segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

A tragédia humana II

Neste ano de 2008 se completam 150 anos da aparição da Virgem Maria, na cidade de Lourdes, na França. A Virgem apareceu a Bernadette Soubirous para se dizer "a Imaculada", e confirmar o dogma da Imaculada Conceição, promulgado 4 anos antes, em 1854. A Imaculada Conceição significa que a Virgem Maria foi redimida por Cristo por antecipação, em virtude de ser sua mãe, e ter vindo ao mundo sem nenhuma mancha do pecado original. A nosso ouvido tudo isso parece palavreado, palavras sem sentido. Nietzsche, no seu livro Para além do bem e do mal, disse que a mentalidade moderna é tão obtusa que nem sequer entende os significados das palavras cristãs: "pecado", "pecado original", "Imaculada" e tantas outras. Tudo isso parece baboseira de uma época obscurantista, mas se formos atentos não são. Somos mesmo obtusos como diz Nietzsche e não nos damos conta que as palavras cristãs dão nomes a realidades e não a fantasias, e se estas palavras precisamente nos são estranhas, não o são as realidades que elas denominam. A palavra mais estranha, sem dúvida, a que mais causa revolta, e por isso, a mais trágica- de forma irônica, é a palavra "pecado original". O papa João Paulo II, em agosto de 2004 fez sua última visita à França e a Lourdes, pedindo que o mundo se lembrasse do pecado original. Nós, no Brasil, temos uma grande sorte. Não estamos sós. Temos Machado de Assis, o biógrafo do pecado original. Toda a literatura de Machado de Assis, especialmente os seus romances "realistas" são como que "a biografia, a documentação" do pecado original. Lendo seus romances, podemos entender o que é, como se manifesta e como se desenvolve o pecado original. O pecado original é a tragédia humana, é essa incapacidade genética que o homem tem de realizar sozinho os seus mais altos ideais. O livro de Machado que melhor trata disso é Memórias Póstumas de Brás Cubas. Lá é narrado como uma vida poderia ter sido e não foi, tanto que um dos últimos capítulos é intitulado "Das negativas", e o autor se jactancia de "não legar a ninguém o fardo desta vida". Pois bem: é exatamente esta realidade tão-nos conhecida que a Igreja chama de "pecado original". Não é uma lenda, é a incapacidade estrutural de ser feliz de forma autônoma, isso do ponto de vista pessoal, mas social também. As tragédias que marcam o mundo desde que foi lançado o excelente panfleto de Kant Para a paz perpétua (1795), mostram que o homem é estrutural e inexoravelmente incapaz de se dar a paz e a a felicidade que tanto anela. Os espíritos religiosos são os mais sagazes neste sentido, e por mais confusão que exista, a maioria das religiões implica este reconhecimento e a necessidade de uma intervenção, da vinda de um Outro, que possa "salvar" o homem. Este é o anúncio cristão. O poeta francês Péguy disse que um Deus que se condoeu com a nossa dor, veio, para que todo o nosso desejo de felicidade e liberdade não terminasse em tragédia. Como diziam os cristãos dos primeiros séculos: a nossa culpa é feliz, porque nos trouxe um Salvador tão grande! Lourdes está aí para nos lembrar disso: desde que um Deus se encarnou, a tragédia não é a última palavra. Toda a luta agora é essa: entre essa esperança, e as trevas que querem encobri-la a qualquer custo!

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