segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Clarice e o real


Hoje de manhã li o conto de Clarice Lispector "Feliz aniversário" e cada dia que passa eu me impressiono mais com o que me atrai tanto na prosa clariceana e porque a maioria das pessoas não consegue entendê-la.
Quase ninguém consegue entendê-la porque Clarice é terrivelmente simples. Simples como uma criança que tem o real, somente o real diante de si. E mais nada!
O que me fascina em Clarice é a riqueza, o vigor e a força que o real, somente o real demonstram, o nexo com o real, que é o nosso íntimo sustento, como nos fala a filósofa espanhola Maria Zambrano.
Há muitos anos, eu fiquei chocado lendo a contracapa do livro O Senso Religioso quando o autor fala que "para sermos sempre e verdadeiramente religiosos devemos viver intensamente o real, sem renegar e nem esquecer nada." Eu fiquei chocado porque a imagem que eu tinha da religião era o exato oposto: alienação, fuga do mundo, e é o exato contrário.
A verdadeira religiosidade, que é o reconhecimento da dependência do Mistério a cada instante, nos lança para mais dentro da realidade, porque nos ajuda a reconhecer que dentro de cada circunstância alegre ou dolorosa, o Mistério habita e espera por nós.
Nesse sentido, o único e verdadeiro inimigo da religiosidade verdadeira é a ideologia. Preferir a ideologia ao real é o que a Bíblia denomina de idolatria. O real sempre é maior que a ideologia pela simples razão de existir, enquanto que a ideologia não passa de pura projeção sobre o real das nossas medidas, ou como chama a Bíblia, ídolo.
Uma das razões pelas quais eu gosto cada vez mais de Clarice Lispector é que nela, não há lugar para ídolos, conceitos, projeções... há lugar somente para a vida, para o real, para aquilo que existe, e que só por esta razão deve ser amado, acolhido e abraçado. O grande problema da nossa época é que vivemos não do choque contínuo com o real, com aquilo que de fato existe, mas de ideologias e utopias. Utopia, em grego significa lugar inexistente (-ù: não; -tópos: lugar). Como não se pode amar aquilo que não existe, acabamos por odiar o existente. Por isso, a primeira coisa para que possamos amar é afirmar aquilo que existe. Não é óbvio que alguma coisa existe e que a encontramos em nosso caminho. Não é óbvia a sua riqueza absoluta, por isso devemos afirmar a positividade inexorável do real, daquilo que existe e que está vivo, aqui e agora. O real é um milagre, existe!
Eu fico impressionado com a tremenda mobilização de recursos para saber se existe vida em Marte ou fora da Terra. O fato é que a vida existe, aqui na Terra, pelo menos, e precisa ser amada e afirmada, até o fim!
Encerro com uma frase tremenda dessa mulher, do seu livro A Paixão segundo G.H.: "Ser real é assumir a própria promessa: assumir a própria inocência e retomar o gosto do qual nunca se teve consciência: o gosto do vivo!"

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