segunda-feira, 29 de setembro de 2008

A equação inexistente

Não acho que seja por acaso que vou escrever isso hoje. Há exatos cem anos morria Machado de Assis, o maior gênio da literatura nacional e um dos maiores da literatura universal, em pé de igualdade com Dostoiévski. Pois, bem Machado vem com esta máxima: "verdadeiramente, há só uma desgraça: é não nascer." (in: Memórias Póstumas de Brás Cubas, cap. CXVII, pg. 202. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1971). Ou seja, ele está afirmando que a vida é bem, é positiva, vale a pena.Eu digo isso porque tive uma conversa na sexta-feira com uma pessoa que defende o aborto, apontando-o como uma solução para o problema da saúde pública.

A Igreja se opõe a tudo que vá de encontro à vida, como expressa na sua Constituição Pastoral Gaudium et Spes (Alegria e Esperança):

« Tudo quanto se opõe à vida, como seja toda a espécie de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho, em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis. Todas estas coisas e outras semelhantes são infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a civilização humana, desonram mais aqueles que assim procedem, do que os que padecem injustamente; e ofendem gravemente a honra devida ao Criador » (GS, 27)

O que me impressionou foi que ela me perguntou: "e aí, Dimitri? Qual é a solução?" Eu me dei conta de uma coisa muito simples, mas muito importante: não existe uma equação, uma fórmula para resolver o problema do mal. Não existe uma receita para combater o mal. Este é o problema de todas as ideologias, sejam elas de esquerda, como o marxismo; ou de direita, como o nazi-fascismo. Não há uma solução global para o problema do mal.

Isso é verdade porque o mal é gerado pela liberdade humana, que pode escolher sempre e muitas vezes escolhe o mal, e eu mesmo não estou livre disto. Mesmo intelectuais ateus como Sartre disseram "o homem é condenado a ser livre". E quantas vezes eu mesmo, querendo fazer o bem, acabo fazendo o mal?

A realidade é complexa a este ponto porque cada pessoa é uma individualidade, uma liberdade. A única possibilidade de "resolver com uma equação" o problema do mal seria o controle total das liberdades: o totalitarismo, que foi o que vimos que aconteceu com as ideologias nazi-fascista e comunista, que tentaram "consertar" o mundo. O difícil é conviver com o mal, com o mal próprio e o do mundo ao redor. É muito difícil, às vezes, se dar conta de que por mais que façamos, o mundo sempre terá mendigos. Jesus foi realista ao extremo quando disse: "Vocês sempre terão pobres com vocês".

Diante disso, ou temos uma posição niilista, cínica, que não acredita em nada, ou podemos ter uma outra visão. O cristianismo é uma novidade total, porque não só é contra a morte, mas vence a morte "de dentro": reconhece e afirma que o mal existe. O mal existe e vem de onde? O mal é terrível, mas é muito simples: O mal é um grande "não": um grande "não" ao ser, à vida, à Deus, que se traduz numa palavra muito precisa "ódio". Jesus, então, vem não explicar uma doutrina ou uma teoria, mas é aquele que vem dizer "sim" ao ser, à vida e a Deus, para que nós possamos dizer também, ou seja, para que possamos amar. Porque amar não é conivência, amar é afirmar o outro pelo simples fato dele existir, amar é a gratuidade total, é o bem por excelência. A resposta do cristianismo não é uma sutil equação que resolva os problemas do mundo, como Habermas muito habilmente tenta fazer (e é justíssimo, mas sempre vai faltar algum fator que ele não vai conseguir captar), mas é vencer o mal "por dentro", com o "sim", ou seja, com o amor. Se a origem do mal é o "não", a resposta a ele só pode ser o "sim". A forma como temos para "vencer o mal", a começar pelo nosso próprio, do qual muitas vezes temos vergonha e dor é o "sim": sim à nossa própria existência em primeiro lugar, que não é nem um pouco óbvia (o mal sempre começa com um "ódio a si"), às pessoas que encontramos, à realidade com a qual nos deparamos, ao Mistério que fez e faz tudo. Os santos são a mais admirável "prova" da eficácia do "sim". Cleuza Zerbini, em São Paulo, não tem nenhuma teoria total sobre o mundo, mas graças ao sim dela às necessidades que viu em sua frente, mais de 40 mil (!) jovens estão estudando em São Paulo.

A forma que temos para "resolver" o problema do aborto é o surgimento de uma cultura da vida, uma valorização do ser, da realidade, daquilo que existe. A figura da Virgem Maria é a mais potente inimiga do niilismo hoje, porque Maria é a perfeita anawim (do hebraico pobre, aquela que espera somente em Deus). Eu tenho em casa uma imagem que um amigo meu trouxe de Lourdes (França) e me consola e me enche de esperança ver a Virgem de mãos unidas rezando por nós (digo isso porque fiquei muito triste com o que aconteceu ontem em Ondina). Maria é a mais terrível inimiga do mal porque disse "sim". Ela é o sinal mais potente de adesão ao ser, à vida, aquilo que existe, à realidade. Maria é a mais terrível inimiga do mal, porque é humana, e como mulher disse "sim". Em 1858, ela apareceu em Lourdes para lembrar o mundo de uma realidade há muito esquecida: o que a Igreja chama de "pecado original". O pecado original não é uma lenda, é a incapacidade estrutural que temos para nos manter firmes nos nossos desejos de bem. São Paulo assim se expressa "não faço o bem que quero, mas o mal que não quero". (cf. Rm 7,14-8,17) O comunismo deu errado porque não considerou isso. Não adianta inventar um sistema perfeito que deixe de levar em consideração a liberdade humana, que pode sempre optar pelo mal (com todas as suas conseqüências). Por isso João Paulo 2º, cheio de sabedoria, escreveu a Maria esta belíssima oração, que eu contraponho aqui ao que estão distribuindo por aí com a imagem dela, pedindo pelo aborto, como a mais nova panacéia para resolver todos os problemas do mundo. Tal como o Holocausto, há setenta anos.

"Ó Maria,
aurora do mundo novo,
Mãe dos viventes,
confiamo-Vos a causa da vida:
olhai, Mãe,
para o número sem fim
de crianças a quem é impedido nascer,
de pobres para quem se torna difícil viver,
de homens e mulheres
vítimas de inumana violência,
de idosos e doentes assassinados
pela indiferença
ou por uma presumida compaixão.
Fazei com que todos aqueles que crêem
no vosso Filho
saibam anunciar com desassombro e amor
aos homens do nosso tempo
o Evangelho da vida.
Alcançai-lhes a graça de o acolher
como um dom sempre novo,
a alegria de o celebrar com gratidão
em toda a sua existência,
e a coragem para o testemunhar
com laboriosa tenacidade,
para construírem,
juntamente com todos os homens
de boa vontade,
a civilização da verdade e do amor,
para louvor e glória de Deus Criador
e amante da vida." (João Paulo 2º, Encíclica O Evangelho da Vida, p. 210)

Um comentário:

Vinícius Mascarenhas disse...

Gostei da oração!

E a ieia central é muito interessante. Realemente não existe uma equação para combater o mal. As pessoas devem preocupar-se, em primeiro lugar, em fazer o bem. Cada uma começando consigo própria.