sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Agnósia

Anteontem assisti o filme "Ensaio sobre a cegueira", baseado na obra de Saramago (1995). O filme é algo excepcional; fidelíssimo ao livro homônimo ele consegue ao mesmo tempo subverter os cânones hollywoodianos e os do cinema "cult" (que eu, particularmente, gosto).
Ensaio sobre a cegueira parte de uma situação insólita: de repente todos os habitantes de uma cidade começam a ficar cegos, de uma cegueira "branca", leitosa (onde o doente vê não a escuridão, mas uma névoa branca em sua frente), de uma doença, que depois é diagnosticada como agnósia.
Agnósia remonta claramente a agnosticismo, é uma metáfora muito clara do agnosticismo, que é um método de pensamento através do qual as pessoas, observando a realidade, são incapazes de reconhecer o Mistério, e dessa forma, reconhecer a si mesmas (pois o homem só tem consistência em si mesmo, ontologia, no Mistério, fora disso ele é nada e pó, como nos atesta a sociologia do conhecimento e o marxismo).
As pessoas começam a ficar cegas e os seus instintos começam a aflorar, como se o fato delas não mais poderem ver as desinibisse da moral. Na verdade, o que o filme passa é que o homem, sem os grandes ideais, nada mais é do que um animal, do que uma mera formiga, escrava dos instintos ou do poder. É interessante ainda o fato de uma pessoa permanecer vendo: a esposa do médico. Ela, vendo toda aquela situação, se torna serviço. Subvertendo o ditado que diz que em terra de cego, quem tem um olho é rei, ela, tendo um olho, vendo, se torna serva, indicando o caminho para o controle e o possível fim da barbárie.
Eu achei também muito interessante a referência a São Paulo. Ele foi convertido sendo cego por uma luz, porque vendo os cristãos, foi incapaz de reconhecer o Senhor Jesus, precisando se tornar cego para converter-se e voltar a enxergar. Há uma clara referência ao Evangelho: os homens estão incapazes de ver, e por isso ficaram cegos, porque vêem, mas na verdade não enxergam. o filme claramente nos diz: somos cegos com olhos!
Eu achei também muito interessante uma coisa que foi dita sobre os relacionamentos: antes da epidemia de cegueira, as pessoas não se relacionavam porque tinham medo de se perder, tinham medo de perder a sua individualidade e pessoalidade, e também pelo fato da auto-suficiência: achando que bastavam-se a si próprias (o que é um engodo terrível), se iludiam pensando que não precisavam de ninguém. A cegueira os mostrou o que de fato eram: dependentes uns dos outros e revelou a eles que não se perderiam se se tornassem amigos, mas que esse era o caminho para "se ganharem uns aos outros".
Vi muita gente falar mal do filme: me disseram que é chocante, que tem muita miséria, que não tem beleza etc. O que querem? Desconhecem o homem e o seu mal? Eu acho que este é um filme para nos sacudir e para nos forçar a pensar, para nos ferir, porque nós estamos acostumados a ver casos como o de Eloá e já se torna algo que nem mais nos sensibliza e muito menos comove e mobiliza. Penso que Ensaio sobre a cegueira cumpriu sua missão. Espero que ele abra os nossos olhos para o seguinte fato: ou pomos diante de nós grandes ideais ou nos reduziremos a formigas, fazendo emergir a barbárie neste mundo e aumentar ainda mais a injustiça, a tristeza e o cinismo.

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