quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Eloá instrumentalizada

O que eu mais acho impressionante nas ideologias é o quanto elas aproveitam da realidade para justificarem a si mesmas. O movimento do homem sadio, do homem são é deixar-se corrigir pela realidade, seja ela qual for, enquanto que o homem ideológico perverte a realidade para justificar as suas teorias. A teoria, necessariamente é algo parcial, é uma sintetização da realidade que sempre precisa de uma correção. Quem é cientista sabe muito bem que a ciência corrige-se a si mesma, junto com a filosofia, rumando à verdade, àquilo que é. Verdade, veritas, aletheia é a correspondência entre a minha inteligência (nous) e a realidade, as coisas (rei). Por isso, devemos sempre deixar nossas teorias serem constantemente corrigidas pela realidade. Quando nós, numa pretensão de "dar lições à realidade", temos a pretensão de substitui-la por uma teoria que a explique de uma vez por todas, temos o fenômeno da ideologia. Ideologia é um sistema de pensamento, uma teoria sistematizada que pretende dar ao homem uma explicação total da realidade. O homem não consegue viver numa tensão diante do real. A primeira coisa que a ideologia mata é o conhecimento. Porque o conhecimento vem do choque entre a minha consciência e a realidade. Se eu já tenho a explicação total da realidade, eu me nego a receber o impacto do real, e deixo de conhecer, empobreço-me enquanto pessoa e enquanto homem de ciência. O progresso da ciência depende sempre desse choque, desse impacto com o desconhecido que vai tornando-se conhecido. A tentação da torre de marfim da ideologia é muito grande. Não é à toa que o Livro da Sabedoria, na Bíblia apresenta a idolatria, que é a pretensão de tomar a parte como o todo, como a origem de todo o mal, porque fecha o homem à realidade e à "Realidade" (com "R" maiúscula) suprema, que é o mistério de Deus.


Este é o motivo porque também os ídolos das nações serão julgados,
porque, na criação de Deus, eles se tornaram uma abominação, objetos
de escândalo para os homens, e laços para os pés dos insensatos.
É pela idealização dos ídolos que começou a apostasia, e sua
invenção foi a perda dos humanos.
Eles não existiam no princípio e não durarão para sempre;
a vaidade dos homens os introduziu no mundo. E, por causa disso,
Deus decidiu a sua destruição para breve.
(...)
Como se não bastasse terem errado acerca do conhecimento de
Deus, embora passando a vida numa longa luta de ignorância, eles dão
o nome de paz a um estado tão infeliz.
Com efeito, sacrificando seus filhos, celebrando mistérios ocultos, ou
entregando-se a orgias desenfreadas de religiões exóticas,
eles já não guardam a honestidade nem na vida nem no casamento,
mas um faz desaparecer o outro pelo ardil, ou o ultraja pelo adultério.
Tudo está numa confusão completa - sangue, homicídio, furto,
fraude, corrupção, deslealdade, revolta, perjúrio,
perseguição dos bons, esquecimento dos benefícios, contaminação
das almas, perversão dos sexos, instabilidade das uniões, adultérios e
impudicícias -
porque o culto de inomináveis ídolos é o começo, a causa e o fim de
todo o mal. (Sb 14,12-14.22-27)


Toda essa conversa foi pra falar de Eloá. Recebi o e-mail de um amigo dizendo que as feministas estão taxando o fato de "feminicídio". Pra mim, se trata sim, da morte de uma mulher, de uma menina, mas antes de tudo, da morte de uma pessoa humana. De uma pessoa que tem um valor infinito justamente pelo fato de ser uma "cópia" desse mesmo infinito, da mesma forma que os embriões e fetos que as feministas advogam a morte. A ideologia feminista é exemplo do que falei acima: não se olha a realidade, o fato de uma pessoa estar viva e aspirar à vida, e não à morte. O homem naturalmente aspira à vida e não à morte, tanto é que já vejo muitos defensores do aborto dizerem que fazem isso em "defesa da vida" e que não têm prazer na morte do feto, mas que isso é algo "necessário" em virtude da "saúde pública". Pelo menos já é uma posição mais humana. Mas a vida é um fato, existe, não se reduz a ideologias ou a sistemas de pensamento ou a engenharias sociais. Diante da vida, não se pode mover-se tendo uma receita (que é a ideologia, ideologia é uma receita). Diante da vida, só se pode mover-se com comoção, como alguém se move quando outro está se afogando, ela não teoriza sobre ou vai buscar uma receita para salvar o outro, simplesmente pula no mar e salva quem está morrendo. Por isso, o Servo de Deus João Paulo 2º disse que não será uma fórmula, ou seja, uma ideologia a nos salvar, mas uma pessoa, alguém que pule no mar e nos salve de nos afogarmos. Para os pagãos, o mar é símbolo do caos e da desordem, por isso, o mar virou símbolo do paganismo, e por autonomásia, deste mundo. Nós, cristãos, temos "a" novidade por excelência. No mar das nossas vidas, e do nosso mundo, no qual estávamos nos afogando, alguém - o Verbo divino, a Razão-Amor - já "pulou" para nos salvar, entrando dentro da História na noite de Natal, para instaurar uma nova cultura, da vida e de amor à realidade, e portanto às pessoas. Será que nos nós estamos dispostos a abandonar os nossos ídolos, as nossas criações mentais e nos aventurarmos na aventura iniciada pelo próprio Infinito, quando por puro amor, resolveu descer a esta Terra, para salvar-nos?
Esta é a pergunta: queremos as trevas da idolatria, nas quais a morte de Eloá é instrumentalizada politicamente, ou a novidade do amor, na qual a morte de Eloá se torna perdão e vida, como para as sete pessoas que receberam os órgãos dela? A escolha está em nossas mãos.

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