quinta-feira, 26 de junho de 2008

O inferno dos vivos

"O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrê-lo. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir-lhe espaço". Ítalo Calvino em As Cidades Invisíveis, p. 150

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Canto noturno de um pastor errante da Ásia

Giacomo Leopardi

[...] Mas tu, sozinha, eterna peregrina,
Que tão pensativa és, talvez entendas
Este viver terreno,
O sofrer nosso, o suspirar, que seja;
Que seja este morrer, este supremo
Descorar do semblante,
E da terra sumir, fugir do aceno
Da habitual, amante companhia,
E decerto compreendes
O segredo das coisas, vês o fruto
Da manhã e da noite,
Do tácito, infinito andar do tempo.
Sabes, por certo, a qual doce amor seu
Sorri a primavera,
A que, o estio é útil, a quem serve
O inverno e a sua neve.
Mil coisas sabes tu, e mil descobres,
Que estão ocultas ao pastor simplório.
Amiúde, ao te ver
Muda assim sobre campos que, desertos,
Lá na distância com o céu confinam;
Ou então a viajar
Comigo e meu rebanho tão de perto;
E quando olho a amplidão, de estrelas cheia,
Penso e digo comigo:
Por que tanta candeia?
Por que estes ares infinitos, este
Infinito profundo, sereno, esta
Imensa solidão? E eu, que sou eu?
[...]

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Um outro mundo é possível

As notícias que me chegam na televisão são terríveis. Nesta semana fiquei sabendo da agressão cometida a dois cães, um em Brasília, e outro no sul do Brasil, se não me engano. O primeiro foi agredido por um jovem de dezoito anos que brigou com a namorada e se vingou no cão dela, batendo-lhe de tall forma até lhe quebrar duas patas, uma dianteira e outra traseira. O cão foi operado e adotado por uma menina de sete anos, que promete cuidar bem dele. Vendo o cãozinho brincar com a menina, fiquei pensando que tipo de pessoa é capaz de cometer semelhante crueldade. O outro caso foi bem menos feliz. Alguns meninos amarraram uma cadela de rua grávida no carro e a arrastaram pela rua, matando a ela e seus filhotes. Eu fiquei chocado e indignado. De onde vem toda essa violência, que é gratuita? Não dá para apelar ao velho mote da esquerda apelando à pobreza ou até à necessidade da violência, porque em nenhum destes casos isto se justifica.
O fato é que estamos nos tornando uma sociedade da violência. O ódio vem sendo pregado como a salvação e o motor para a construção de um mundo novo. Eu fiquei impressionado pela seqüência de violências perpretadas pela Via Campesina e pelo MST por todo o Brasil: o pior de tudo é que isso se justifica em nome do bom, do belo e do que há de melhor... sem falar na maior de todas as violências, que é a violência contra os mais indefesos: os não-nascidos, os embriões destruídos nas pesquisas com células-tronco embrionárias e os fetos abortados, imolados no altar do deus bem-estar, qual novo Holocausto (sempre que eu penso no aborto eu lembro do massacre de Cartago, quando 300 crianças foram queimadas vivas numa pira em honra do deus Moloc, em nome de um bem-estar... e Cartago foi riscada do mapa anos depois...)
O ódio nunca vai resolver os problemas do mundo. O que eu vejo, depois de oito anos que reunião global para a "contestação transnacional" foi que pouca coisa de fato foi construída de concreto como alternativa, a não ser se a destruição do humano é tida como construção. O aborto é a maior de todas as violências, e é exatamente a sua legitimação, que provocou a morte daquela cadela no sul do Brasil e o aborto de seus filhotes. Não entendo como alguém pode se comover com isso, e não se comover com o Holocausto que está sendo perpretado em nosso país em nome do bom, do belo e do que há de melhor...
A violência avança em nosso país, e as causas não são econômicas, porque a economia melhora, os salários aumentam, a desigualdade social diminui, mas a violência cresce dia após dia: crianças, prostitutas e cães são arrastados pelas ruas amarrados em carros, crianças são jogadas pelas janelas dos apartamentos pelos seus pais... coisas absurdas apenas há pouco tempo atrás...
A perda do significado e do valor da pessoa humana é a grande responsável por tudo isso. Se o homem é fruto somente do seu entorno, do material biológico de seu pai e sua mãe, em suma, da matéria, da cultura... então o poder tem todo o domínio sobre ele, e está aberto caminho para a escravidão mundial: hoje os embriões e os fetos são eliminados em nome do bom, do belo e do que há de melhor... quem garante que amanhã não serei eu ou você? Em nome do que o homem poderá ser defendido contra a violência que alcançou o seu nível magno no Holocausto nazista, mas ainda pode superá-lo?
No encontro do papa com os jovens em Colônia na Alemanha, em 2005, o mesmo slogan do Fórum Social Mundial estava estendido: "um outro mundo é possível". A Igreja, esta amizade iniciada há 2000 anos é o outro mundo possível. É o outro mundo neste mundo, eu experimento isso, eu creio porque eu vejo, a Igreja é realmente um mistério de amor, amizade: eis a novidade sempre fresca e viva, que não envelhece. O que se apresentou como "novo" em ódio a esta amizade nada mais é do que o retrocesso ao velho, "retrocesso de 2000 anos", diria Raymond Aron. O mais engraçado é que muitos negam ou se escandalizam com esta afirmação sem dela fazer a mínima experiência que seja. Só a Igreja defende o homem, porque só ela o afirma tal como ele é: "exigência de sentido ou significado", ou numa fórmula mais antiga: "um nada capaz de Deus".
A única forma de "conter" a violência é amar, é construir com a própria vida, espaços de amizade e de gratuidade, onde a amizade triunfe sobre o domínio e o amor triunfe do poder. Isto ergueu uma civilização! Construir esta amizade com a própria vida é o único caminho para um mundo de paz e de vida, como disse o Senhor Jesus: "felizes os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus".

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Despedaçados

Ontem pela manhã fui levar um amigo que trabalha em Roma e passou a semana em Salvador à Catedral Basílica no Terreiro de Jesus, depois fui ao museu que fica logo atrás da "nave" (a principal parte) da Igreja. Fiquei impressionado com a mentalidade que se exprimia numa das salas, porque era de uma perfeição impressionante. Eu fiquei verdadeiramente chocado, essa é a palavra, com a distância da qual eu mesmo estou daquela mentalidade. O que me impressionou foi a riqueza de detalhes, a perfeição no mínimo desenho, que só é possível a quem tem a consciência do todo, um Jesus crucificado que parece real... eu pensei: "só quem tem uma forte experiência com o Senhor Jesus faz uma coisa dessas, não se faz por encomenda, ou por estética". Indo à Catedral foi que eu percebi a dimensão do niilismo no qual estamos vivendo, e que nem eu mesmo dele estou livre. A nossa mentalidade é despedaçada, esquizofrênica, falta o sentido do todo, o sentido da vida, da realidade... o niilismo é realmente a praga desta época, sem dúvida, a mais terrível da História, época de avanços magníficos na técnica e na ciência, mas ao mesmo tempo, uma época na qual o sentido da vida, que é como disse Camus, "a mais urgente das questões", a mais primordial necessidade, é terrivelmente negligenciado. Nunca houve época como esta! O buraco negro do niilismo e do nada, ameaça engolir a todos: por isso triunfa a esquizofrenia, a depressão, a loucura... ainda bem que existe uma realidade concreta, que nos faz lembrar que não estamos determinados pelo despedaçamento e que existe uma possibilidade muito concreta de viver a vida cem vezes mais, de modo inteiro, sem renegar e nem esquecer nada!