quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Eloá instrumentalizada

O que eu mais acho impressionante nas ideologias é o quanto elas aproveitam da realidade para justificarem a si mesmas. O movimento do homem sadio, do homem são é deixar-se corrigir pela realidade, seja ela qual for, enquanto que o homem ideológico perverte a realidade para justificar as suas teorias. A teoria, necessariamente é algo parcial, é uma sintetização da realidade que sempre precisa de uma correção. Quem é cientista sabe muito bem que a ciência corrige-se a si mesma, junto com a filosofia, rumando à verdade, àquilo que é. Verdade, veritas, aletheia é a correspondência entre a minha inteligência (nous) e a realidade, as coisas (rei). Por isso, devemos sempre deixar nossas teorias serem constantemente corrigidas pela realidade. Quando nós, numa pretensão de "dar lições à realidade", temos a pretensão de substitui-la por uma teoria que a explique de uma vez por todas, temos o fenômeno da ideologia. Ideologia é um sistema de pensamento, uma teoria sistematizada que pretende dar ao homem uma explicação total da realidade. O homem não consegue viver numa tensão diante do real. A primeira coisa que a ideologia mata é o conhecimento. Porque o conhecimento vem do choque entre a minha consciência e a realidade. Se eu já tenho a explicação total da realidade, eu me nego a receber o impacto do real, e deixo de conhecer, empobreço-me enquanto pessoa e enquanto homem de ciência. O progresso da ciência depende sempre desse choque, desse impacto com o desconhecido que vai tornando-se conhecido. A tentação da torre de marfim da ideologia é muito grande. Não é à toa que o Livro da Sabedoria, na Bíblia apresenta a idolatria, que é a pretensão de tomar a parte como o todo, como a origem de todo o mal, porque fecha o homem à realidade e à "Realidade" (com "R" maiúscula) suprema, que é o mistério de Deus.


Este é o motivo porque também os ídolos das nações serão julgados,
porque, na criação de Deus, eles se tornaram uma abominação, objetos
de escândalo para os homens, e laços para os pés dos insensatos.
É pela idealização dos ídolos que começou a apostasia, e sua
invenção foi a perda dos humanos.
Eles não existiam no princípio e não durarão para sempre;
a vaidade dos homens os introduziu no mundo. E, por causa disso,
Deus decidiu a sua destruição para breve.
(...)
Como se não bastasse terem errado acerca do conhecimento de
Deus, embora passando a vida numa longa luta de ignorância, eles dão
o nome de paz a um estado tão infeliz.
Com efeito, sacrificando seus filhos, celebrando mistérios ocultos, ou
entregando-se a orgias desenfreadas de religiões exóticas,
eles já não guardam a honestidade nem na vida nem no casamento,
mas um faz desaparecer o outro pelo ardil, ou o ultraja pelo adultério.
Tudo está numa confusão completa - sangue, homicídio, furto,
fraude, corrupção, deslealdade, revolta, perjúrio,
perseguição dos bons, esquecimento dos benefícios, contaminação
das almas, perversão dos sexos, instabilidade das uniões, adultérios e
impudicícias -
porque o culto de inomináveis ídolos é o começo, a causa e o fim de
todo o mal. (Sb 14,12-14.22-27)


Toda essa conversa foi pra falar de Eloá. Recebi o e-mail de um amigo dizendo que as feministas estão taxando o fato de "feminicídio". Pra mim, se trata sim, da morte de uma mulher, de uma menina, mas antes de tudo, da morte de uma pessoa humana. De uma pessoa que tem um valor infinito justamente pelo fato de ser uma "cópia" desse mesmo infinito, da mesma forma que os embriões e fetos que as feministas advogam a morte. A ideologia feminista é exemplo do que falei acima: não se olha a realidade, o fato de uma pessoa estar viva e aspirar à vida, e não à morte. O homem naturalmente aspira à vida e não à morte, tanto é que já vejo muitos defensores do aborto dizerem que fazem isso em "defesa da vida" e que não têm prazer na morte do feto, mas que isso é algo "necessário" em virtude da "saúde pública". Pelo menos já é uma posição mais humana. Mas a vida é um fato, existe, não se reduz a ideologias ou a sistemas de pensamento ou a engenharias sociais. Diante da vida, não se pode mover-se tendo uma receita (que é a ideologia, ideologia é uma receita). Diante da vida, só se pode mover-se com comoção, como alguém se move quando outro está se afogando, ela não teoriza sobre ou vai buscar uma receita para salvar o outro, simplesmente pula no mar e salva quem está morrendo. Por isso, o Servo de Deus João Paulo 2º disse que não será uma fórmula, ou seja, uma ideologia a nos salvar, mas uma pessoa, alguém que pule no mar e nos salve de nos afogarmos. Para os pagãos, o mar é símbolo do caos e da desordem, por isso, o mar virou símbolo do paganismo, e por autonomásia, deste mundo. Nós, cristãos, temos "a" novidade por excelência. No mar das nossas vidas, e do nosso mundo, no qual estávamos nos afogando, alguém - o Verbo divino, a Razão-Amor - já "pulou" para nos salvar, entrando dentro da História na noite de Natal, para instaurar uma nova cultura, da vida e de amor à realidade, e portanto às pessoas. Será que nos nós estamos dispostos a abandonar os nossos ídolos, as nossas criações mentais e nos aventurarmos na aventura iniciada pelo próprio Infinito, quando por puro amor, resolveu descer a esta Terra, para salvar-nos?
Esta é a pergunta: queremos as trevas da idolatria, nas quais a morte de Eloá é instrumentalizada politicamente, ou a novidade do amor, na qual a morte de Eloá se torna perdão e vida, como para as sete pessoas que receberam os órgãos dela? A escolha está em nossas mãos.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Agnósia

Anteontem assisti o filme "Ensaio sobre a cegueira", baseado na obra de Saramago (1995). O filme é algo excepcional; fidelíssimo ao livro homônimo ele consegue ao mesmo tempo subverter os cânones hollywoodianos e os do cinema "cult" (que eu, particularmente, gosto).
Ensaio sobre a cegueira parte de uma situação insólita: de repente todos os habitantes de uma cidade começam a ficar cegos, de uma cegueira "branca", leitosa (onde o doente vê não a escuridão, mas uma névoa branca em sua frente), de uma doença, que depois é diagnosticada como agnósia.
Agnósia remonta claramente a agnosticismo, é uma metáfora muito clara do agnosticismo, que é um método de pensamento através do qual as pessoas, observando a realidade, são incapazes de reconhecer o Mistério, e dessa forma, reconhecer a si mesmas (pois o homem só tem consistência em si mesmo, ontologia, no Mistério, fora disso ele é nada e pó, como nos atesta a sociologia do conhecimento e o marxismo).
As pessoas começam a ficar cegas e os seus instintos começam a aflorar, como se o fato delas não mais poderem ver as desinibisse da moral. Na verdade, o que o filme passa é que o homem, sem os grandes ideais, nada mais é do que um animal, do que uma mera formiga, escrava dos instintos ou do poder. É interessante ainda o fato de uma pessoa permanecer vendo: a esposa do médico. Ela, vendo toda aquela situação, se torna serviço. Subvertendo o ditado que diz que em terra de cego, quem tem um olho é rei, ela, tendo um olho, vendo, se torna serva, indicando o caminho para o controle e o possível fim da barbárie.
Eu achei também muito interessante a referência a São Paulo. Ele foi convertido sendo cego por uma luz, porque vendo os cristãos, foi incapaz de reconhecer o Senhor Jesus, precisando se tornar cego para converter-se e voltar a enxergar. Há uma clara referência ao Evangelho: os homens estão incapazes de ver, e por isso ficaram cegos, porque vêem, mas na verdade não enxergam. o filme claramente nos diz: somos cegos com olhos!
Eu achei também muito interessante uma coisa que foi dita sobre os relacionamentos: antes da epidemia de cegueira, as pessoas não se relacionavam porque tinham medo de se perder, tinham medo de perder a sua individualidade e pessoalidade, e também pelo fato da auto-suficiência: achando que bastavam-se a si próprias (o que é um engodo terrível), se iludiam pensando que não precisavam de ninguém. A cegueira os mostrou o que de fato eram: dependentes uns dos outros e revelou a eles que não se perderiam se se tornassem amigos, mas que esse era o caminho para "se ganharem uns aos outros".
Vi muita gente falar mal do filme: me disseram que é chocante, que tem muita miséria, que não tem beleza etc. O que querem? Desconhecem o homem e o seu mal? Eu acho que este é um filme para nos sacudir e para nos forçar a pensar, para nos ferir, porque nós estamos acostumados a ver casos como o de Eloá e já se torna algo que nem mais nos sensibliza e muito menos comove e mobiliza. Penso que Ensaio sobre a cegueira cumpriu sua missão. Espero que ele abra os nossos olhos para o seguinte fato: ou pomos diante de nós grandes ideais ou nos reduziremos a formigas, fazendo emergir a barbárie neste mundo e aumentar ainda mais a injustiça, a tristeza e o cinismo.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Eloá

Escrevo esse post ouvindo Zombie e pensando nesse mundo no qual habita a injustiça, e também a tristeza, mas acima de tudo, o cinismo. Enquanto uma vida - uma vida! - foi perdida, as pessoas se metem em investigações cínicas para saber quem foi o culpado, ou pior ainda falando sobre o fato do pai da menina ser um foragido da polícia. Eu ouvi até gente dizer "aqui se faz, aqui se paga, matou tantos, e agora a filha foi morta" ... um absurdo completo!
Não consegui reprimir as lágrimas assistindo pela TV o enterro de Eloá e vendo como este mundo, como bem diz o Evangelho jaz no maligno, no mal, na mentira, no ódio. Porque as pessoas se odeiam umas às outras, se ignoram e se repelem umas às outras, e querem pôr toda a culpa num jovem de 22 anos como o ex-namorado de Eloá, Lindembergue. Não gosto de teorias que vitimizam, mas digo com certeza que ele nada mais é do que fruto desta sociedade que vive a época mais terrível da História, época na qual a depressão se tornará em breve, a segunda causa de morte no mundo. A depressão é algo terrível, eu já vi uma pessoa morrer de depressão, em 2004, e tenho amigos que sofrem com este, que é o mal do século XXI, a era mais gélida de todos os tempos. Dante, no canto XXXIV da Divina Comédia, afirma que "o coração, o centro do inferno é feito de gelo":


À parte era chegado, onde imergida
Cada alma em gelo está (tremo escrevendo),
Bem como aresta no cristal contida.
(...)
Do aflito reino o imperador eu via:
Do gelo acima o seio levantava.
A um gigante igualar eu poderia,

(Divina Comédia, Inferno, Canto XXXIV, vv. 10-12; 28-30)

O inferno ser de gelo significa que lá não há movimento, tudo é parado, é morte, é frio e desolação. Tudo isso porque o inferno nada mais é que um grande "não" ao ser e à vida, que podemos dar individualmente, mas que pela primeira vez na História, estamos dando coletivamente como sociedade: como é que um homem permite que a menina Nayara voltasse a estar com o seqüestrador se ele olhasse minimamente que fosse para o valor - infinito - da vida dela? Essas são questões que a desvalorização da vida, a cultura da morte nos impõe ... a vida não vale mais nada, e acabamos sendo, como afirmou Sartre, "formigas". Encontrei uma mulher revoltada no domingo com esta situação: "hoje em dia ninguém mais se preocupa com ninguém! O ser humano não é disso! Formiga é que é assim! Você pisa em uma, a outra cheira, e depois vai embora!" Os gatos também são assim, se dois gatos irmãos estão num telhado, um deles cai e morre, o que o outro faz? Vai cheirar, e depois sai, como se nada tivesse acontecido. Mas nós não somos assim, embora estejamos vivendo assim. É essa indiferença que tem gerado a depressão, o desespero e o desequilíbrio, porque o homem é exigência de infinito, de ser amado, acolhido e abraçado, o homem é espera do infinito, é espera do amor, e quando não encontra, murcha, fenece e morre.
Outra coisa que pouquíssima gente se deu conta. Pelo menos a mãe e o irmão de Eloá são evangélicos. "Eloá" em hebraico significa "Deus". É tremendo como uma metáfora profundíssima. Nossa sociedade está assim, porque Deus mesmo está sendo assassinado. Nietzsche disse: "Deus está morto - e completa - e fomos nós que o matamos". A morte de Eloá é poderosíssima para demonstrar que a sociedade está assim porque nós, nós assassinamos Deus, e portanto a própria Eloá. João Paulo 2º disse, na mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1985, que quando nós assassinamos Deus, é o homem que morre a seguir. Porque o homem só tem valor, só tem o ser se o reconhecemos como relação direta com o Mistério, com o infinito, e portanto mais do que meras formigas.
A saída nos é dada pela própria mãe, que segue o que a grande filósofa Hannah Arendt reconheceu como a grandeza do cristianismo: o perdão. A mãe de Eloá perdoou o assassino. Eu chorei ontem vendo aquilo! Que mulher grandiosa! Dava pra ver que era verdade, que não era só encenação! E por que ela conseguiu perdoar? Porque já se reconhecia perdoada! A grandeza do cristianismo é que ele não é uma doutrina, uma teoria, é um fato, é Alguém que te diz: "Eu te amo, eu te perdôo!", que introduz o amor no mundo, pois para o homem, ser amado significa ser perdoado. Fiquei muito comovido com o irmão de Eloá que disse que aquilo se tratava de um desígnio de Deus para salvar a vida de sete pessoas, e que tinha ficado feliz com o fato de Eloá viver em sete pessoas! Meu Deus, como estou comovido! A solução para o mundo é mesmo o amor, que só pode vir da fé, como tantos têm nos testemunhado: Cleuza e Marcos Zerbini, Rose e Vicky de Uganda, e agora a mãe e o irmão de Eloá. De fato, um outro mundo é possível: esta é a vitoria que venceu o mundo, o inferno, a depressão e o nada: a nossa fé!

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

A perfeição

O que me tranqüiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.

O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fração de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.

Tudo o que existe é de uma grande exatidão.
Pena é que a maior parte do que existe
com essa exatidão
nos é tecnicamente invisível.

O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.

Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição.

In: A Descoberta do Mundo, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, p. 226

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Moby Dick: um evangelho em forma de romance

por Nivaldo Cordeiro
Vice-Presidente do Conselho Fiscal do CIEEP (Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista)

Faço aqui um breve comentário, mais no intuito de divulgar a obra entre aqueles que não leram, ou leram na juventude e deixaram de sorver o vinho armazenado em velhos odres, o melhor de todos. Ler o livro de Herman Melville (1819-1891), “Moby Dick”, depois de tantos anos, é uma grande aventura para a alma. Sim, o livro fala mesmo é de iniciação mística, da morte e ressurreição pensadas nos termos cristãos. É atualíssimo, não obstante a sua narrativa ser um tanto antiquada. Todo o texto fala de uma única pessoa, o próprio autor, e para compreender a epopéia é preciso lê-lo de trás para frente, mas isso não é possível numa primeira vez. É obra para os espíritos velhos, de todas as idades, sobretudo para quem já passou do meio-dia da vida.

Os personagens principais não coincidentemente recebem nomes bíblicos. Ismael, o filho de Abraão com a serva de Sara, Agar, dá nome ao personagem principal e narrador, o único que sobrevive à aventura heróica. Acab, personagem casado com Jezabel, “o que era mal aos olhos do Senhor, mais do que todos os que foram antes dele” (1Reis 16,30), dá nome ao segundo personagem em hierarquia de importância. Jezabel era aquela que matava os profetas do Senhor. Elias, diante de Acab e de todo o povo, pergunta: “até quando coxeareis entre dois pensamentos?” (1Reis 18,21), Acab, o personagem, era coxo, pois o Leviatã havia lhe devorado uma das pernas.

É evidente, para quem conclui a leitura, que Acab é a velha personalidade de Ismael que precisava morrer para renascer, sendo Ismael o único que poderia sobreviver à louca aventura da alma. O título do Epílogo não deixa margem à dúvida: “E só eu escapei para contar-te”, citação extraída no Livro de Jó. Em “Moby Dick” podemos ler: “Considerai tudo isso, e voltai-vos depois para essa verde, suave e docílima terra; considerai os dois, o mar e a terra: não descobris estranha analogia com algo dentro de vós? Pois assim como esse pavoroso oceano rodeia a terra verdejante, assim também na alma do homem jaz uma Taiti insular, cheia de paz e alegria, mas cercada de todos os horrores da existência semi-conhecida. Deus te guarde! Não desatraques dessa ilha, não podes voltar jamais”. Claro que Melville refere-se à dialética entre o Eu e o Inconsciente, para usar a terminologia junguiana.

Em outra parte podemos ler: “Oh! Meus amigos, mas isso é matar o homem! E, todavia, isso é vida. Pois nem bem nós, mortais, com longas labutas extraímos do vasto corpo desse mundo seu escasso, mas valioso espermacete; nem bem, com fatigada paciência, nos limpamos das sujeiras desse mundo e aprendemos a viver aqui, nos puros tabernáculos da alma; nem bem fazemos isso, quando – ‘Lá esguicha ela’ – jorra a alma, e lá velejamos para combater outro mundo e atravessar de novo a velha rotina da vida jovem”. Esse trecho deixa claro que a pesca da baleia é uma metáfora para o crescimento espiritual e que a baleia pode ela mesma ser identificada com a própria alma, posto que é um símbolo da transformação do inconsciente.

Outro personagem que precisamos sublinhar é Quiqueb, a sombra primitiva e canibal de um cristão civilizado, o canibal caçador de cabeças que as vendia empalhadas, chegando a dar uma delas para Ismael. Cabeças cortadas e empalhadas por um canibal primitivo são apenas uma maneira que o autor encontrou para mostrar o quando vale a função pensamento e mesmo o intelecto, desgrudado de sua plenitude com as demais funções psicológicas, como vemos no mundo moderno. Em outra parte do “Moby Dick”, duas cabeças de baleia são penduradas no navio, quais esfinges. Ainda uma vez notamos a preocupação de Melville em denunciar a unilateralidade do intelecto no mundo ocidental. Quiqueb é a Sombra de Ismael porque com ele divide o leito, fato estranhíssimo para um homem viril se não for considerado um recurso narrativo, para mostrar o conteúdo psicológico do mesmo. Dormimos com a nossa sombra agarrada às nossas costas, para o nosso desconforto e a nossa redenção. Em outra parte, Quiqueb e Ismael são amarados com cordas para cumprir tarefas arriscadas, de tal sorte que um só poderia viver se o outro também vivesse, formando uma unidade. Um dos capítulos dá ênfase a Quiqueb, que é chamado de forma sintomática de “Um amigo íntimo”.

O início da narrativa começa em uma noite escura e fantasmagórica, recurso também usado por Dante Alighieri (1265-1321) para iniciar o seu grande poema de iniciação – “A Divina Comédia” – para relatar os fatos da alma. Os tempos também são bíblicos: três anos de viagem, três dias de caçada, tempo que se liga diretamente a terceiro dia da paixão e morte de Cristo, quando ocorre a sua ressurreição. O autor, por esse recurso, também faz da sua aventura a máxima aventura do Cristianismo. Ele é salvo no final por um salva-vidas na forma de ataúde. A morte é seguida por ressurreição. Ismael é resgatado pelo veleiro “Raquel”, alusão àquela que não queria ser consolada, pois que seus filhos já não viviam, personagem do livro de Jeremias.

E o paralelo com o livro de Jonas mais do que salta aos olhos. Esse livro profético mantém interesse especial por dois motivos. O primeiro é que é uma narrativa estranhíssima e, a rigor, não é exatamente profético. Jonas foge de uma missão dada por Deus, mas dela não consegue se livrar. O segundo porque é o primeiro instante na história da Revelação que a Justiça divina é suplantada por sua Misericórdia. Por isso é um dos livros capitais da Bíblia. A metáfora do homem que por três dias entra no ventre da baleia e depois é devolvido a terra é uma prefiguração da história de Cristo, de sua morte e ressurreição.

A pesca da baleia e seus navios foram magistralmente utilizados por Melville como metáfora. O baleeiro, por exemplo, tem um forno, que pode ser considerado uma espécie de inferno das profundezas, onde ardem as almas penadas.

É notável a ausência de personagens femininos, que aparecem apenas em esposas, mães e filhas ausentes, e também nos nomes de outras embarcações (“Raquel”, “A Virgem”). Mas o elemento feminino é, sobretudo, sublinhado pelo oceano, as profundezas da função sentimento tão pouco desenvolvida nas pessoas do tipo pensamento. As cabeças empalhadas de Quiqueb mostram a compensação da consciência unilateral do autor, assim como o mar profundo a grandeza exaltada da função feminina por excelência, a sentimento. É uma epopéia masculina.

É óbvio que a leitura do livro pressupõe certo conhecimento da Bíblia, sem o qual muitas passagens não terão sentido e muito da sutileza psicológica não poderá ser percebida. “Moby Dick” é um evangelho escrito na forma de romance.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Carta a Diogneto

"Os cristãos não se distinguem dos demais homens, nem pela terra, nem pela língua, nem pelos costumes. Nem, em parte alguma, habitam cidades peculiares, nem usam alguma língua distinta, nem vivem uma vida de natureza singular. Nem uma doutrina desta natureza deve a sua descoberta à invenção ou conjectura de homens de espírito irrequieto, nem defendem, como alguns, uma doutrina humana. Habitando cidades Gregas e Bárbaras, conforme coube em sorte a cada um, e seguindo os usos e costumes das regiões, no vestuário, no regime alimentar e no resto da vida, revelam unanimemente uma maravilhosa e paradoxal constituição no seu regime de vida político-social. Habitam pátrias próprias, mas como peregrinos: participam de tudo, como cidadãos, e tudo sofrem como estrangeiros. Toda a terra estrangeira é para eles uma pátria e toda a pátria uma terra estrangeira. Casam como todos e geram filhos, mas não abandonam à violência os recém-nascidos. Servem-se da mesma mesa, mas não do mesmo leito. Encontram-se na carne, mas não vivem segundo a carne. Moram na terra e são regidos pelo céu. Obedecem às leis estabelecidas e superam as leis com as próprias vidas. Amam todos e por todos são perseguidos. Não são reconhecidos, mas são condenados à morte; são condenados à morte e ganham a vida. São pobres, mas enriquecem muita gente; de tudo carecem, mas em tudo abundam. São desonrados, e nas desonras são glorificados; injuriados, são também justificados. Insultados, bendizem; ultrajados, prestam as devidas honras. Fazendo o bem, são punidos como maus; fustigados, alegram-se, como se recebessem a vida. São hostilizados pelos Judeus como estrangeiros; são perseguidos pelos Gregos, e os que os odeiam não sabem dizer a causa do ódio. Numa palavra, o que a alma é no corpo, isso são os cristãos no mundo. A alma está em todos os membros do corpo e os cristãos em todas as cidades do mundo. A alma habita no corpo, não é, contudo, do corpo; também os cristãos, se habitam no mundo, não são do mundo. A alma invisível vela no corpo visível; Também os cristãos sabe-se que estão neste mundo, mas a sua religião permanece invisível. A carne odeia a alma, e, apesar de não a ter ofendido em nada, faz-lhe guerra, só porque se lhe opõe a que se entregue aos prazeres; da mesma forma, o mundo odeia os cristãos que não lhe fazem nenhum mal, porque se opõem aos seus prazeres. A alma ama a carne, que a odeia, e os seus membros; Também os cristãos amam os que os odeiam. A alma está encerrada no corpo, é todavia ela que sustém o corpo; Também os cristãos se encontram retidos no mundo como em cárcere, mas são eles que sustêm o mundo. A alma imortal habita numa tenda mortal; Também os cristãos habitam em tendas mortais, esperando a incorrupção nos céus. Provada pela fome e pela sede, a alma vai-se melhorando; também os cristãos, fustigados dia-a-dia, mais se vão multiplicando. Deus pô-los numa tal situação, que lhes não é permitido evadir-se."

(século II d.C. - escrita entre 120 e 150 d.C.)

domingo, 5 de outubro de 2008

A percepção do devir

Alguns fatos têm me provocado a me lançar agora nessas "meditações políticas". O primeiro foi ontem, quando quase fui agredido fisicamente na Avenida Sete e na Vitória. E hoje, o fato de ter sido presidente da seção 223 da Zona 001, na Faculdade de Direito e ter encontrado o professor Carlos Milani e a professora Marie-Françoise Durand (da Science-Po, Paris)caminhando na Graça. Milani é política, Durand é política. Hoje o meu dia foi embebido em política. Como não pensar em política se esta, como diz Michel Foucault está até em nosso corpo e "quem não gosta de política é governado por ela".
O grande risco de tudo isso é o que eu já chamei em alguns meses de redução política, reduzir o mundo da vida somente à política. Da mesma forma que o neoliberalismo (a loucura com método - a crise americana nos deixa de cabelo em pé quanto à loucura do cassino global) tenta reduzir tudo à economia (por incrível que pareça o marxismo faz a mesma coisa quando põe a ontologia do homem no seu fazer-se, o homem produzindo-se a si mesmo por meio do trabalho), também a ideologia pode reduzir tudo à política, tudo ao poder.
E hoje eu estava pensando em como eu estava nestas eleições e minha relação com a política. Tudo isso porque eu não espero mais a salvação da política, como antes, nem mais de um lado nem de outro. Nem da esquerda, mas também não da direita. Comentando com um amigo entusiasta da direita, eu disse a ele: "pra mim não existe nem a esquerda nem a direita, mas somente a Cruz". Ele ficou escandalizado quando ouviu isso, e de uma certa forma, nem eu mesmo estava entendendo o que eu estava dizendo, coisa que eu só entendi agora e por isso estou escrevendo este post.
Eu saio triste destas eleições, é um fato. Não porque meu candidato provavelmente não vai ganhar (por que se fosse, e daí? Saramago, inteligentemente quando ganhou o prêmio Nobel de Literatura, disse: 'ganhei o Nobel! E daí?'), mas porque de que adianta eu ganhar o mundo inteiro e perder a mim mesmo? Que adianta "ganhar as eleições" e não fazer nada de participar da velha luta pelo poder que é tão velha quanto andar pra frente, a tal ponto de Aristóteles chamar o homem de "animal político"? Que adinata "ganhar" e "me perder"? Porque a única forma de não me perder é a afirmação do ser, e portanto, da liberdade.
Vendo o debate da Rede Bahia na quarta e percebendo a re-arrumação do poder na Bahia após a morte de ACM, eu percebo cada vez mais claramente o que é este fluxo do poder e o devir, e como o indivíduo, se a sua pessoalidade não é afirmada (e o é somente por meio da religiosidade, somente!) é somente pó e cinza no decorrer da História e do avanço impessoal e implacável do devir. E como o devir é terrível, porque a afirmação do devir é a afirmação de um poder gigantesco (a "Idéia" que é o Deus hegeliano todo-poderoso e implacável e que por fim reduzirá todos nós a nada em nome da afirmação de si própria).
Na minha seção votou o irmão de João Amazonas (que foi durante muitos anos presidente nacional do PC do B), de 92 anos, e uma mulher disse: 'ele só vota no PC do B'. Eu olhei para ele e o respeitei do alto dos seus noventa e dois anos e pensei 'meu Deus, esse cara apostou a vida nisso, se o comunismo estiver errado ele está fudido, porque apostou a vida numa mentira, e se estiver certo, também está fudido, porque vai morrer e não o verá realizado, é injusto!' E eu me enchi de tristeza...
Minha cabeça está assolada de "pensamentos políticos", eu diria, porque mesmo esperando a Cidade Celeste, desejo contribuir para edificar a Cidade Terrena, a afirmação da Cidade Celestial não pode ser um pretexto para alienar-me da Cidade Terrestre. Mas aí meu espírito se povoa de dúvidas: o que é mesmo o poder? Como se expressa e acontece? Quais os limites a ele e quem lhe impõe? Como pode acontecer a justiça em relação ao Estado? (porque o Estado é um bem, embora carregue dentro de si uma ambivalência monstruosa que pode degenerar em totalitarismo) E como viver política com liberdade, sem esperar dela a salvação da vida, colocando-a em seu justo lugar na totalidade do mundo da vida? E como defender, propagar e fazer crescer a democracia, que é como diz Churchill "a pior forma de governo, exceto todas as outras que têm sido tentadas de tempos em tempos"? Bom, essas são somente inquietações, para as quais não tenho respostas no momento. Quem sabe, com o tempo, elas vão aparecendo e sendo divulgadas neste humilde espaço...