quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Em tempos de política

Uma das coisas mais impressionantes que já li sobre sobre Política foi no Antigo Testamento, no Primeiro Livro de Samuel. Após a libertação da escravidão no Egito e do estabelecimento em Canaã, o povo hebreu, após a morte de seus dois grandes líderes, Moisés e Josué, era governado de forma auto-gestionária, pelos chamados juízes (os juízes foram os grandes responsáveis pela fixação do povo hebreu em Canaã, e se tornaram personagens célebres como Gideão, que derrotou os madianitas e Sansão, que matou três mil filisteus).

Apesar dos juízes serem grandes líderes, sua liderança era carismática e baseava-se na inspiração, no exemplo. Não existia a ideia de uma instituição que unificasse as doze tribos e todos os clãs que formavam o povo hebreu. O povo era governado pela Lei que recebeu de Moisés. Esta Lei estava codificada no que hoje chamamos de Pentateuco - os cinco grandes livros da Lei, especialmente no Êxodo, no Levítico e no Deuteronômio - , e por meio desta Lei, os clãs se auto-governavam de forma autônoma, sendo esse auto-governo mediado por grandes sábios, que faziam a interpretação da Lei e a aplicação aos casos concretos, os juízes.

O último grande juiz de Israel foi Samuel. Uma das coisas mais impressionantes em todo o Antigo Testamento é ver o povo pedir a Samuel que lhes sagrasse um rei usando como argumento o fato de que "todos os povos vizinhos tinham um rei", e que por conta disso, eles também queriam ter um rei. O que impressiona é que este povo fugiu justamente da instituição da realeza (a concentração do poder numa figura única), pois fugiram do Faraó do Egito. E além de tudo mais, a instituição dos reis era, na maior parte dos casos, a fonte e a origem da opressão (expressa pelo chamado modo de produção asiático, no qual todos os súditos eram virtualmente escravos do soberano, que em muitos casos, apresentava-se a si próprio como a encarnação do divino, do Mistério, como o próprio Faraó, que se auto-intitulava "Deus"). O povo de Israel era contrário a tudo isso, era uma subversão absoluta, já que o Mistério era concebido, pelos hebreus como o Santo, ou seja, o Totalmente Outro, e que não se identificava de forma alguma com algum poder constituído pelos homens.

O trecho abaixo mostra como surge no povo de Israel o desejo de um rei, o desejo de uma unidade política. Segue o trecho, o mais pode ser lido no Primeiro Livro de Samuel.

"E sucedeu que, tendo Samuel envelhecido, constituiu a seus filhos por juízes sobre Israel.
E o nome do seu filho primogênito era Joel, e o nome do seu segundo, Abia; e foram juízes em Berseba.
Porém seus filhos não andaram pelos caminhos dele, antes se inclinaram à avareza, e aceitaram suborno, e perverteram o direito.
Então todos os anciãos de Israel se congregaram, e vieram a Samuel, a Ramá,
E disseram-lhe: Eis que já estás velho, e teus filhos não andam pelos teus caminhos; constitui-nos, pois, agora um rei sobre nós, para que ele nos julgue, como o têm todas as nações."

(1 Samuel 8:1-5)

Dessa forma, atendendo aos pedidos dos anciãos, dos líderes dos clãs do povo, Saul foi constituído por Samuel o primeiro rei de Israel e foi o responsável pela consolidação de sua unificação política, preparando o caminho para os grandes reinados de Davi e de Salomão (que construiu o Templo, que tornou-se símbolo da nação, mais tarde). A coisa que impressiona é observar o povo abrindo mão de sua autogestão, de sua liberdade, de sua autonomia, em virtude da unidade política, por meio da força e da institucionalização, usando como justificativa o que hoje chamaríamos de benchmarking (a imitação das melhores práticas), dado que a maior parte dos povos se organizava politicamente dessa forma mais unificada (como as clássicas cidades-Estado). Porém, a História mostrou que esse modelo político não funcionou muito em Israel. O reinado foi uma instituição trágica para o povo hebreu. Em algumas dezenas de anos, a nação se dividiu em duas, sendo que uma delas foi completamente destruída, e a outra se viu escravizada novamente em Babilônia, vítima do mesmo modelo político operado no Egito, o modo de produção asiático. Israel só readquiriu soberania sobre sua terra em 1948, há 64 anos, após o holocausto prepetrado por Hitler.