segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

A vertigem de Santa Maria

Fui golpeado pela notícia da tragédia em Santa Maria (RS), a qual fiquei acompanhando as notícias o tempo todo ontem. Hoje, tive dois pesadelos, inclusive nos sonhos eu estava em Porto Alegre. As cenas de horror, de desespero, mães chorando, a presidenta Dilma, "gente jovem reunida", como canta Elis Regina. Tudo isso revirou em minha cabeça, e do profundo de mim emergia um grito: "por quê?", "que significado tem tudo isso?". É verdade que o grito sobre a última palavra sobre a realidade ecoou também, mas antes deste ecoou o grito: "qual é o significado da nossa vida? Da minha vida?" A vertigem tomou conta de mim. É impressionante o realismo e a concretude da Bíblia: "Os dias do homem são semelhantes à erva, ele floresce como a flor dos campos. Apenas sopra o vento, já não existe, e nem se conhece mais o seu lugar." (Salmo 103:15-16)

Esta tragédia me introduziu esta vertigem, e me introduziu no mistério que é a realidade. Me ajudou a me dar conta de que estou vivo, existo e esta vida não é óbvia e nem mesmo a mereço. Muita gente agora vai procurar os culpados, saber de quem foram os erros, que leis mais rígidas devem ser editadas para evitar novas tragédias como estas, dentre tantas outras medidas. Tudo isso é muito importante, mas não dá uma resposta específica às vidas daquelas pessoas e nem mesmo às famílias delas. Quem fará justiça às pessoas que morreram intoxicadas por fumaça tóxica vítimas da sucessão de erros de uma série de pessoas? Simplesmente condenar os culpados e editar novas leis é uma justiça que faremos a nós mesmos, e na melhor das hipóteses, às famílias das vítimas. Quem fará justiça a quem perdeu a própria vida, em plena juventude, em pleno florescer? Quem vai fazer justiça à erva ainda cheia de seiva que foi ceifada antes mesmo de secar? Só a admissão de um além permite respirar numa situação dessas. O próprio Mistério presente disse isso, comentando sobre uma tragédia em Jerusalém: “Ou cuidais que aqueles dezoito homens, sobre os quais caiu a torre de Siloé e os matou, foram mais culpados do que todos os demais habitantes de Jerusalém? Não, digo-vos.” (Lucas 13,4-5).

Se não existe um além no qual a justiça é possível, e se toda a realidade coincide com aquilo que nós podemos mensurar e medir com a nossa própria medida, a justiça é impossível. A palavra justiça bem que poderia ser riscada do dicionário. Mas também a palavra vida. Porque a vida é exigência de justiça. É impossível viver sem a esperança da justiça. Só é possível respirar num caso desses se antevemos o Mistério, se esta tragédia nos deixa em suspensos. Suspensos, em vertigem, mas não desesperados. Me marca muito o fato que esta tragédia tenha acontecido na cidade que leva o nome de Maria. Eu pensei nas muitas mães que perderam os seus filhos, e pensei naquela que sabe a dor de ter um filho assassinado injustamente. E eu pedi à Santa Maria, a Mãe de Deus, que rogasse por nós, porque somos pecadores (eu o maior deles, sem dúvida), pecadores, porque duvidamos do seu Filho, achamos, numa hora dessas que Ele tirou um cochilo ou foi descansar, e nos deixou aqui, sozinhos, com o nosso nada. O nome da cidade evoca já a esperança. Pedi à Santa Maria que rogasse por nós, ela, a Injustiçada, a Vítima de todos nós, pecadores, que rogasse por nós, agora e na hora de nossa morte, porque eu também vou morrer, um dia. Santa Maria, a grande Mãe de Deus, é a inimiga mortal do niilismo. Opõe-se a ele ainda hoje. Torna humano tudo aquilo que ela toca. Injustiçada, é a Rainha da Misericórdia, e abraça a todos nós.

sábado, 12 de janeiro de 2013

A Ilustração e a desconfiança

Jürgen Habermas, último defensor do Iluminismo com Joseph Ratzinger, em 2004

Uma dos frutos mais impressionantes da Ilustração, mais do que a dúvida, é a desconfiança. Em 1784, quando Immanuel Kant escreveu o panfleto O que é a Ilustração, ele respondeu que a Ilustração era atingir a maioridade, sair da menoridade, libertar-se "da tutela". "Tutela" de quem? Tutela do Papa e da Bíblia. O que o filósofo defendia é que o homem não precisa de "a priori", ou seja, de "premissas", de "pressupostos", neste caso, os "dogmas" "impostos" pelo Papa (para os católicos) ou pela Bíblia (para os protestantes). Kant levou o princípio da dúvida exposto por Renée Descartes às últimas consequências, no afã de tirar o homem, e em seu lugar colocar a razão, o "puro pensamento" no centro do universo. Estava aberto o cenário para a eclosão da modernidade nas décadas seguintes: a razão foi finalmente entronizada como rainha do universo, e aquilo que não se enquadrasse em seus limites seria tido como irracional. Kant demonstra isso em seu "A religião nos limites da simples razão", quando tenta reduzir o fenômeno religioso (especialmente o cristianismo) a mera ética, e portanto, destrui-lo em sua categoria de acontecimento. Aquilo que a razão não consegue compreender é simplesmente descartado como uma "crença irracional", meramente subjetiva.

Essas teses não são meras discussões da filosofia, porque tiveram um forte impacto na política e na sociologia, e até mesmo na psicologia das massas. Em termos de psicologia, a consequência mais impressionante é o espalhar-se de uma desconfiança generalizada em tudo e em todos. Só damos crédito àquilo que entendemos com a nossa própria razão. O homem moderno inteligente não confia, é como um novo São Tomé, quer tocar com a própria mão, tem desconfiança até mesmo do pai e da mãe. Isso é desastroso para os relacionamentos, porque começa-se a entender o outro como uma ameaça, alguém que não se pode confiar, alguém de quem eu necessariamente tenho de me defender. O filósofo Jean-Paul Sartre cunhou a máxima que ficou famosa "O inferno são os outros". Como construir uma sociedade fundada sobre a desconfiança?

Em termos de política, verifica-se a consequência da Ilustração na retirada da fé no espaço público. Se a religião é algo meramente irracional, subjetivo, não merece espaço no espaço público, que seria o espaço da razão. Não nos damos conta, mas isso abre um espaço sem precedentes para a tirania e para o acúmulo de um poder sem precedentes por parte do Estado. Cícero, no seu livro Da República, disse que "a criação do Estado é a maior imitação de Deus que o homem possa fazer". Em A Fenomenologia do Espírito, o filósofo Hegel disse mais ou menos a mesma coisa quando afirma que "a plenitude da razão é o Estado". A sutileza desta posição é que ela, no afã de nos libertar da "tutela da religião" nos torna escravos dos detentores do poder, ou seja, daqueles que manejam o Estado. Se o Estado é a plenitude da razão, e a razão é o centro do Universo, aqueles que detêm o poder do Estado podem ditar livremente aos outros o que podem ou não deixar de fazer, podem moldar por si mesmos como bem entenderem o homem, e contam especialmente com os meios de comunicação nos dias hodiernos para atingir o seu intento.

O Estado sempre esteve em confronto com a religiosidade verdadeira, sempre tentou se imiscuir nos assuntos da religiosidade, sempre tentou perverter a religiosidade (muitas vezes tornando-a idolátrica ou até mesmo satânica), porque no fundo, o poder sabe que a religiosidade verdadeira, ou seja, o reconhecimento do Mistério, e o relacionamento com Ele é, no fundo, a última alternativa à tirania do poder sobre a pessoa humana. O poder sabe que o homem verdadeiramente religioso sabe quem verdadeiramente é a sua consistência, e que justamente por isso, torna-se verdadeiramente livre, mesmo no meio das mais terríveis opressões políticas.