quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Clarice Lispector

Hoje é aniversário de Clarice Lispector. Gosto muito de Clarice Lispector não somente por um gosto estético, literário, ou porque ela é a maior e mais profunda escritora do Brasil, gosto de Clarice porque tenho uma relação pessoal com ela. Eu posso dizer que Clarice Lispector, de uma certa forma, me introduziu no Mistério. Porque ela mesma diz em A paixão segundo G.H. "Se a 'verdade' fosse aquilo que posso entender - terminaria sendo apenas uma verdade pequena, do meu tamanho." Clarice nos introduz na nossa grandeza de homens, que é a aceitação do Mistério.

Quem é Clarice Lispector? Não me alongo em descrições meramente exteriores, onde nasceu (Ucrânia), em que ano (1920 - há alguns que dizem que foi em 1925), em que tipo de família (judia), onde morou (Recife - na colônia judaica, e no Rio), nem o que estudou (Direito), nem com quem casou (um diplomata) e quantos filhos teve (dois).
Quem é esta mulher? Esta é a pergunta que nasce quando se lê seus contos, ou livros, ou crônicas (ela foi jornalista também), quando se assiste a sua última entrevista na TV Cultura (em 1977, ano de sua morte), ou quando se visita uma exposição em sua homenagem (como eu fiz, maio do ano passado, em São Paulo).

Quem é Clarice Lispector? O que marca a sua obra? Qual a sua contribuição? Qual o seu mistério, qual a sua novidade?

A novidade de Clarice Lispector é a simplicidade, é o real, somente o real. Clarice é terrivelmente simples. Numa época na qual a complexidade é o que é valorizada, e com ela, as loucuras, as neuras, os traumas e as depressões; é a simplicidade que resplandece em Clarice.

Ela mesma disse: "as pessoas não me entendem porque eu sou simples". Clarice é de uma simplicidade que dói. Seus contos, novelas e romances são retratos muito enxutos e muito vivos do nosso cotidiano, da nossa vida simples, do nosso dia-a-dia. Mas Clarice tem um diferencial, ela não se limita a ser uma cronista que narra o que acontece no dia-a-dia da nossa existência, ela não torna a nossa existência uma mera clepsidra (clepsidra é um antigo relógio de água que o escritor Camilo Pessanha usa para batizar seu livro de 1926; num livro extremamente triste ele compara os instantes da nossa vida às gotas de água que caem da clepsidra: iguais em consistência e vazios em significado). Para Clarice, "o vazio tem o valor e a semelhança do pleno" e sua busca é pelo significado. Não é à toa que o título do seu primeiro romance é "Perto do Coração Selvagem" (faz lembrar o quadro Ícaro de Matisse, de 1943), que foi seguido por Água viva (clara referência ao Evangelho), A maçã no escuro (que é uma metáfora do drama do pecado - a maçã - e as conseqüências que adviriam deste - o escuro), e A Paixão Segundo o G.H. (que é uma sigla de "A paixão segundo o gênero humano", uma paródia de "a paixão segundo J.C." - Jesus Cristo).

O seu último romance, A hora da estrela, de 1977, começa assim: "Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e começou a vida". Este trecho, aparentemente tão simplório, esconde uma verdade profunda: "tudo começa com um 'sim'", o que significa que o começo de tudo é marcado por duas liberdades.

Uma das características das histórias de Clarice são as "revelações" dos significados. As histórias sempre acontecem no cotidiano, e de repente acontece um fato que "revela" a pessoa a si mesma, é a epifania (manifestação de algo). A epifania retira a nulidade do sentido do instante e dá ao instante o seu pleno valor e significado. Assim, o instante que seria vazio e sem sentido, como a clepsidra, adquire densidade e plenitude. Comparando-se Clarice Lispector e Camilo Pessanha, se entende aquilo que diz Luigi Giussani, que "o coração do homem é a encruazilhada entre o eterno (o infinito) e o nada". Estamos no fio da navalha entre o infinito (a plenitude) e o nada. Tudo vem de uma fonte misteriosa, que é viva, e anima tudo criado, ou tudo corre inexoravelmente para a morte, e como entrar em contato com esta fonte misteriosa que anima tudo criado?

O método - segundo Clarice Lispector - é o fato, um fato que suspende a aparente normalidade do cotidiano, o óbvio ao qual nós inexoravelmente nos remetemos. Clarice vem nos dizer que nada é óbvio. As coisas não são óbvias, eu não óbvio, a vida não é óbvia, e vem nos perguntar: o que sou eu? O que é a vida? O que é tudo? (como nos pergunta o belíssimo poema de Drummond A máquina do mundo).

Com esta finalidade ela usa de recursos estilísticos muitas vezes chocantes.

A Paixão segundo G.H. é o caso de uma mulher que chega em casa e ao fechar uma porta, esmaga uma barata, da qual sai a gosma. A mulher olha a gosma, sente uma atração inexorável e come a gosma. Quando ela faz isso, rompe com todos os padrões e tabus da nossa sociedade e entra em contato com o real propriamente dito, e a partir daí começa uma viagem de conhecimento do real que ela faz pelo fato de esmagar a barata e comer da gosma da barata. Pode parecer loucura comer a gosma da barata, mas numa certa época da história, também se acho estranho que um homem dissesse: "Se vocês não comerem a Minha carne e não beberem o Meu sangue não terão a vida em vocês mesmos". A mulher comeu a gosma da barata e chegou até à vida, para além das meras convenções sociais e daquilo que é meramente convenção humana. Por fim, vejam que coisa tremenda ela diz em seu romance maravilhoso que é A paixão segundo G.H.:

"Ah, perdi a timidez: Deus já é. Nós já fomos anunciados, e foi a minha própria vida errada quem me anunciou para a certa. A beatitude é o prazer contínuo da coisa, o processo da coisa é feito de prazer e de contato com aquilo de que se precisa gradualmente mais. Toda a minha luta fraudulenta vinha de eu não querer assumir a promessa que se cumpre: eu não queria a realidade. (...) Pois ser real é assumir a própria promessa: assumir a própria inocência e retomar o gosto do qual nunca se teve consciência: o gosto do vivo."

Mais uma outra coisa grandiosa nos é dita por Clarice ainda neste mesmo romance, evidenciando a sua atração e preferência por aquilo que efetivamente existe, ou seja, pela realidade:

"A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la – e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas – volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu."

E por fim, ela nos premia com o êxtase, que é, partindo da realidade, o reconhecimento do Mistério com a revelação da nossa dependência original, que nos coloca numa autêntica posição humana:

"O mundo independia de mim – esta era a confiança a que eu tinha chegado: o mundo independia de mim, e não estou entendendo o que estou dizendo, nunca! Nunca mais compreenderei o que eu disser. Pois como poderei eu dizer sem que a palavra mentisse por mim? Como poderei dizer senão timidamente assim: a vida se me é. A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro!"

Como disse São Paulo: "N'Ele - no Mistério - vivemos, existimos e somos" (At 17), e portanto dependemos, não somos autônomos, embora o queiramos ser.

Clarice Lispector é antídoto para as nossas banalidades, ela é introdução ao Mistério, presente que a grande alma russa (a Grande Mãe Rússia - ela é filha de judeus russos) dá para o Brasil. Sendo judia e membro do povo de Deus, Clarice tem uma percepção não só do Mistério, mas de Cristo e da realidade, como pouquíssimas pessoas. Ela é "a alma feminina de Dostoiévski", despida de todas as complicações e ideologizações, típicas do pensamento masculino. Nela só interessa o real, somente o real, o vivo, a realidade e o Mistério, Mistério que é Vida, vida que anima a realidade criada e é o sentido da mesma.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Moby Dick: um evangelho em forma de romance

por Nivaldo Cordeiro
Vice-Presidente do Conselho Fiscal do CIEEP (Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista)

Faço aqui um breve comentário, mais no intuito de divulgar a obra entre aqueles que não leram, ou leram na juventude e deixaram de sorver o vinho armazenado em velhos odres, o melhor de todos. Ler o livro de Herman Melville (1819-1891), “Moby Dick”, depois de tantos anos, é uma grande aventura para a alma. Sim, o livro fala mesmo é de iniciação mística, da morte e ressurreição pensadas nos termos cristãos. É atualíssimo, não obstante a sua narrativa ser um tanto antiquada. Todo o texto fala de uma única pessoa, o próprio autor, e para compreender a epopéia é preciso lê-lo de trás para frente, mas isso não é possível numa primeira vez. É obra para os espíritos velhos, de todas as idades, sobretudo para quem já passou do meio-dia da vida.

Os personagens principais não coincidentemente recebem nomes bíblicos. Ismael, o filho de Abraão com a serva de Sara, Agar, dá nome ao personagem principal e narrador, o único que sobrevive à aventura heróica. Acab, personagem casado com Jezabel, “o que era mal aos olhos do Senhor, mais do que todos os que foram antes dele” (1Reis 16,30), dá nome ao segundo personagem em hierarquia de importância. Jezabel era aquela que matava os profetas do Senhor. Elias, diante de Acab e de todo o povo, pergunta: “até quando coxeareis entre dois pensamentos?” (1Reis 18,21), Acab, o personagem, era coxo, pois o Leviatã havia lhe devorado uma das pernas.

É evidente, para quem conclui a leitura, que Acab é a velha personalidade de Ismael que precisava morrer para renascer, sendo Ismael o único que poderia sobreviver à louca aventura da alma. O título do Epílogo não deixa margem à dúvida: “E só eu escapei para contar-te”, citação extraída no Livro de Jó. Em “Moby Dick” podemos ler: “Considerai tudo isso, e voltai-vos depois para essa verde, suave e docílima terra; considerai os dois, o mar e a terra: não descobris estranha analogia com algo dentro de vós? Pois assim como esse pavoroso oceano rodeia a terra verdejante, assim também na alma do homem jaz uma Taiti insular, cheia de paz e alegria, mas cercada de todos os horrores da existência semi-conhecida. Deus te guarde! Não desatraques dessa ilha, não podes voltar jamais”. Claro que Melville refere-se à dialética entre o Eu e o Inconsciente, para usar a terminologia junguiana.

Em outra parte podemos ler: “Oh! Meus amigos, mas isso é matar o homem! E, todavia, isso é vida. Pois nem bem nós, mortais, com longas labutas extraímos do vasto corpo desse mundo seu escasso, mas valioso espermacete; nem bem, com fatigada paciência, nos limpamos das sujeiras desse mundo e aprendemos a viver aqui, nos puros tabernáculos da alma; nem bem fazemos isso, quando – ‘Lá esguicha ela’ – jorra a alma, e lá velejamos para combater outro mundo e atravessar de novo a velha rotina da vida jovem”. Esse trecho deixa claro que a pesca da baleia é uma metáfora para o crescimento espiritual e que a baleia pode ela mesma ser identificada com a própria alma, posto que é um símbolo da transformação do inconsciente.

Outro personagem que precisamos sublinhar é Quiqueb, a sombra primitiva e canibal de um cristão civilizado, o canibal caçador de cabeças que as vendia empalhadas, chegando a dar uma delas para Ismael. Cabeças cortadas e empalhadas por um canibal primitivo são apenas uma maneira que o autor encontrou para mostrar o quando vale a função pensamento e mesmo o intelecto, desgrudado de sua plenitude com as demais funções psicológicas, como vemos no mundo moderno. Em outra parte do “Moby Dick”, duas cabeças de baleia são penduradas no navio, quais esfinges. Ainda uma vez notamos a preocupação de Melville em denunciar a unilateralidade do intelecto no mundo ocidental. Quiqueb é a Sombra de Ismael porque com ele divide o leito, fato estranhíssimo para um homem viril se não for considerado um recurso narrativo, para mostrar o conteúdo psicológico do mesmo. Dormimos com a nossa sombra agarrada às nossas costas, para o nosso desconforto e a nossa redenção. Em outra parte, Quiqueb e Ismael são amarados com cordas para cumprir tarefas arriscadas, de tal sorte que um só poderia viver se o outro também vivesse, formando uma unidade. Um dos capítulos dá ênfase a Quiqueb, que é chamado de forma sintomática de “Um amigo íntimo”.

O início da narrativa começa em uma noite escura e fantasmagórica, recurso também usado por Dante Alighieri (1265-1321) para iniciar o seu grande poema de iniciação – “A Divina Comédia” – para relatar os fatos da alma. Os tempos também são bíblicos: três anos de viagem, três dias de caçada, tempo que se liga diretamente a terceiro dia da paixão e morte de Cristo, quando ocorre a sua ressurreição. O autor, por esse recurso, também faz da sua aventura a máxima aventura do Cristianismo. Ele é salvo no final por um salva-vidas na forma de ataúde. A morte é seguida por ressurreição. Ismael é resgatado pelo veleiro “Raquel”, alusão àquela que não queria ser consolada, pois que seus filhos já não viviam, personagem do livro de Jeremias.

E o paralelo com o livro de Jonas mais do que salta aos olhos. Esse livro profético mantém interesse especial por dois motivos. O primeiro é que é uma narrativa estranhíssima e, a rigor, não é exatamente profético. Jonas foge de uma missão dada por Deus, mas dela não consegue se livrar. O segundo porque é o primeiro instante na história da Revelação que a Justiça divina é suplantada por sua Misericórdia. Por isso é um dos livros capitais da Bíblia. A metáfora do homem que por três dias entra no ventre da baleia e depois é devolvido a terra é uma prefiguração da história de Cristo, de sua morte e ressurreição.

A pesca da baleia e seus navios foram magistralmente utilizados por Melville como metáfora. O baleeiro, por exemplo, tem um forno, que pode ser considerado uma espécie de inferno das profundezas, onde ardem as almas penadas.

É notável a ausência de personagens femininos, que aparecem apenas em esposas, mães e filhas ausentes, e também nos nomes de outras embarcações (“Raquel”, “A Virgem”). Mas o elemento feminino é, sobretudo, sublinhado pelo oceano, as profundezas da função sentimento tão pouco desenvolvida nas pessoas do tipo pensamento. As cabeças empalhadas de Quiqueb mostram a compensação da consciência unilateral do autor, assim como o mar profundo a grandeza exaltada da função feminina por excelência, a sentimento. É uma epopéia masculina.

É óbvio que a leitura do livro pressupõe certo conhecimento da Bíblia, sem o qual muitas passagens não terão sentido e muito da sutileza psicológica não poderá ser percebida. “Moby Dick” é um evangelho escrito na forma de romance.