sábado, 27 de dezembro de 2008

Diante do Terror sem fim

Um dos meus desejos mais fortes quando chegar à Nova Iorque é visitar o Ground Zero, construído em homenagem aos quase três mil mortos no atentado de 11 de setembro de 2001. Quero visitar não por ser "pró-americano" ou coisas do tipo, sabendo que morrem milhões no Oriente Médio ou no Sudão, por exemplo, mas porque ali morreram pessoas que tinham o mesmo desejo de felicidade que eu tenho e sou.
Uma das coisas que mais me impressiona é porque nós gostamos tanto de esportes, não somente no Brasil, mas no mundo. Ontem, eu acho que tive a resposta: assistindo a Retrospectiva 2008, como faço todos os anos, fiquei impressionado como as boas notícias só vinham mesmo do esporte (salvo a solidariedade à Santa Catarina, vi pouquíssima notícias boas). Por isso, gostamos tanto dos esportes, porque nos trazem boas notícias e realizam a exigência de unidade (posso falar a palavra amor?) inscrita no mais profundo do nosso coração.
Outra pergunta que me vem é: como estar diante do Terror sem fim, como o que por exemplo, assola agora a Palestina novamente? Porque diante de tamanha selvageria, tendemos a perder a fé na vida, na positividade do real, e a esperança que vem justamente de existir dentro de toda esta realidade, uma outra coisa, da qual Tereza de Calcutá, por exemplo, é somente um sinal.
Mas como estar diante do terror? Um grande passo de maturidade é saber que não seremos nós a dar as soluções, quem já tentou, às vezes produziu males ainda piores do que aqueles que tentou debelar. Eu penso que o passo, mesmo humilde e humilhante às vezes, é seguir o caminho de Tereza de Calcutá: responder a uma realidade concreta que tenho à minha frente, como diante de alguém que se afoga, não filosofar, culpar o governos, ou os outros, mas pular e salvar esta pessoa. Somente se uma mentalidade desta se espalha, é que o mundo será outro, e diante do terror, não há nada a fazer, a não ser negociar, esperar, calar, rezar, e enxugar as suas feridas e as suas lágrimas ...

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

O insulto de Veja e o real significado de Darfur


A revista Veja publicou uma reportagem que eu considero um insulto, não somente aos cristãos, mas a todos os homens de boa vontade. A cereja do bolo foi o artigo de Reinaldo Azevedo "Que Deus é este?", que foi no mínimo uma canalhice.
Sinceramente, eu nunca vi algo mais deplorável, mais cínico, mais mal caráter que o que a Veja fez nesta semana. E com que intuito? Tirar a fé, e com ela a esperança, e o amor das pessoas, e justamente na semana do Natal, que vem nos relembrar o fato mais importante da História: o nascimento de Jesus Cristo!
A fé é justamente o reconhecimento de que existe algo de novo, "a mais" na História, um fator a mais que não o nosso costumeiro ódio, terror, medo e rivalidade. Há 2000 anos, no meio das guerras intermináveis, do ódio, da opressão e da revolta, um homem ousou dizer: "amem-se uns aos outros como eu amei vocês!" É impressionante porque esse homem, Jesus, é a introdução do amor no mundo. Não foi um simples profeta a anunciar o mundo futuro, mas construiu a partir dos apóstolos aquilo que iria mudar a face da Terra: uma amizade universal guiada, que existe até hoje, e nós conhecemos com o nome de "Igreja" (que em grego significa re-união: a Igreja é a re-união da humanidade dividida). Quem tem fé reconhece que Ele só pôde fazer isso porque era o próprio Deus feito homem. O amor é a maior "prova" da divindade de Jesus; é humanamente impossível.
Esta história iniciada por Jesus e marcada por inúmeras contradições (para quem quer me apontar as contradições da Igreja, basta lembrar que o traidor pertencia ao próprio grupo dos preferidos de Jesus), deu frutos cujo "perfume" é visível até hoje: a valorização da mulher, o reconhecimento da sacralidade da vida, a criação das escolas, dos hospitais e das universidades, a salvaguarda do patrimônio cultural da Idade Antiga, a civilização dos bárbaros, entre inúmeras outras coisas, que na maior parte dos casos, damos por óbvio, mas que devemos a Jesus Cristo e à Igreja fundada por Ele. Realmente, a imagem do homem moderno é Barrabás. Barrabás é o homem salvo por Cristo que não se dá conta disso. Fomos e somos salvos por Cristo, ainda nesta vida e não nos damos conta disso!
Uma das coisas mais impressionantes que eu observo é em relação à exigência de justiça. Quase todos os meus amigos que são "de esquerda", marxistas ou coisas do gênero, ou seja, pessoas que têm uma profunda exigência de justiça, tiveram contato com a Igreja! Foi justamente a Igreja, tão repudiada, que despertou neles essa exigência, que depois correm para saciá-la em outro lugar, quando o apóstolo São Paulo diz que a justiça "é a fé", isto é, reconhecer as obras de Deus. A obra de Deus é a pessoa mudada, como Tereza de Calcutá, por exemplo. Que existiu uma mulher como ela é motivo de esperança! Mas ela não é a única, como ela, existem aos milhares, aos milhões, pessoas que doam a própria vida ao outro "por amor a Jesus". Estas são as testemunhas silenciosas de "um outro mundo possível" pautado pela esperança.
Como a Veja pode publicar aquela foto - uma paródia quase satânica - dizendo que Darfur desafia "o simbolismo" do Natal? Ora, o Natal não é "um simbolismo", é um fato, uma criança que nasce; e Darfur desafiaria o Natal se somente ela existisse, se não existissem essas testemunhas anônimas na maior parte dos casos, que são o sinal e o começo do "outro mundo possível", porque fundado no amor, isto é, em Deus, porque Deus é amor.
Pois bem: eu fiquei chocado lendo o artigo de Reinaldo Azevedo porque ele se diz católico, e eu vi ali um atentado à fé, eu vi ali um insulto a todos os cristãos, somado à separação que ele operou entre fé e razão, tão condenada por João Paulo 2º e por Bento 16 (em 1998, na encíclica Fides et Ratio - Fé e Razão, João Paulo 2º afirmou que a fé e a razão são as duas asas pelas quais se eleva o espírito humano e que se falta uma, o espírito não decola). É verdade que precisamos de Cristo para viver com a Razão, mas somente porque Ele nos amou e nos ama. Ele nos ensina a viver com amor, a amar. Ele é a Razão-Amor, e viver com a Razão significa amar. O mundo moderno, que perdeu a fé, o reconhecimento deste fato extraordinário no meio de nós, vive em desespero e ódio. Que é o Mal? Desespero e ódio, em suma, niilismo. E qual a origem de tudo isso? A perda da fé. Sem fé, não há esperança e muito menos amor. Basta olhar para os lados.
E qual o significado verdadeiro de Darfur? Eu sinto muita dor quando eu penso que a dor daquelas pessoas está sendo utilizada pelo poder de uma forma tão mesquinha e ainda mais para tirar a fé das pessoas, sabe-se lá com quais propósitos. Darfur representa o fracasso do sistema internacional. O sistema internacional é impotente para impedir que "um ridículo tirano" - como canta Caetano Veloso - de um rincão da África extermine o seu próprio povo. Isto prova que o sistema internacional é uma piada completa. Quando eu me dou conta do que acontece em Darfur, eu não perco a fé em Cristo, como se Jesus ou a Igreja fossem os responsáveis pelo que acontece ali, eu olho o sistema internacional de forma mais realista e menos idolátrica.
O sistema internacional, tal como nós o conhecemos hoje, remonta aos míticos "Tratados de Westphalia", que aconteceram por volta de 1648. Concretamente, significou que os Estados Nacionais, já formados, regulariam-se uns aos outros, sem a intermediação do Papa. Westphalia significa a ateização da política. Significou dizer que "Deus, o Mistério, Cristo não entra aqui nesses assuntos". Wetphalia foi o início da autonomização que acompanha o homem desde o século XVII até os dias de hoje. O resultado de Westphalia foi a construção do "sistema europeu" de Estados (centrados no Reino Unido, na França e no Império Russo), que garantiu ao Reino Unido ser "o império que não via o sol se pôr", à França dominar boa parte da África e à Rússia expandir-se até às bordas do Japão. Foi este mesmo sistema europeu que engendrou a Tríplice Entente (formada pelos três impérios citados) e por fim, à Tríplice Aliança (Alemanha, Itália e Império Áustro-Húngaro), gerando uma disputa por hegemonia que, para quem não lembra resultou na Primeira e por fim na Segunda Guerra Mundial (o detalhe que ninguém sabe que a Segunda Guerra só acabou quando duas cidades japonesas católicas - Hiroshima e Nagasáki - foram destruídas, sacrificando milhares de católico ao ódio do poder), que liqüidaram juntas a vida de dezenas de milhões de pessoas.
Depois do fim da Segunda Guerra, se organizou a ONU e o sistema europeu, tendo já assimilado a URSS e seus satélites, incorporou as ex-colônias e tornou-se "sistema internacional". A ONU que "lidera" o sistema internacional, já mostrou-se incapaz de conter inúmeras barbáries, crimes e atentados contra os direitos humanos das mais variadas espécies. Nas ex-colônias, triunfam ditadores das mais baixas categorias, muitas vezes impingindo uma opressão ainda maior que no tempo dos impérios absolutistas do despotismo esclarecido.
A situação é terrível: o Ocidente opulento vive, cinicamente, como se nada disso existisse, dezenas de milhões morrem sem que se faça quase nada, e uma revista de grande circulação nacional afirma que o genocídio em Darfur "ofusca" o sentido do Natal... pelo contrário, Darfur evidencia o fracasso da tentativa atéia do homem de dar-se a si mesmo a felicidade, de construir pelas próprias mãos a fraternidade universal sonhada por Immanuel Kant quando escreveu o panfleto Para a paz perpétua em 1795.
Ao contrário do que afirma a Veja e Reinaldo Azevedo, o Natal é a nossa única esperança. Ele é a afirmação mais potente de que - como afirma o poeta francês Péguy - Deus, o Mistério, o Infinito, o Logos, o Verbo, a Idéia, o Totalmente Outro, o Transcendente, o Eterno, Aquele-que-é, não só é a Suprema Razão e Sabedoria - o Logos - mas Amor, comoveu-se com o nosso mal e com a nossa dor, e veio habitar entre nós para reerguer este mundo novamente a si, começando o trabalho aqui mesmo e evidenciando que desde já existe aqui mesmo na Terra uma realidade nova, infinitamente mais verdadeira e que corresponde aos desejos mais profundos do nosso coração. Quem já encontrou a comunidade cristã - pessoas que reconhecem a Cristo e que são amigas entre si por causa dEle - sabe que este novo mundo existe, está à disposição de todos, e é a única esperança para o mundo, para o sistema internacional e para Darfur. Darfur grita: o sistema internacional falhou! Nós gritamos: a esperança para o mundo não é um novo sistema mais bem elaborado, é este Menino que trouxe o amor e a vida a nós e ao mundo.

sábado, 20 de dezembro de 2008

Queime depois de ler: a imitação da vida!


Frances McDormand e Brad Pitty

Ontem à noite vi um dos filmes mais inteligentes que já assisti: Queime depois de ler (EUA, 2008). Há um bom tempo não via uma combinação tão perfeita entre humor, inteligência, sátira, crítica e ironia.
O que é criticado neste filme tão interessante?
A nossa vida pós-moderna, que não é "vida", mas uma mera "imitação" desta; a pós-modernidade "pirateou" a vida. E nós todos embarcamos neste redemoinho infernal, como poetiza Bruno Tolentino sem nem nos darmos conta disso. A vida foi "pirateada", é imitada, porque vivemos no domínio da xerox, como Baudrillard inteligentemente se dá conta. Estamos na época da xerox, da cópia, da paródia. E o filme em si mesmo é uma bela paródia da forma como nós levamos a nossa vida.
Em primeiro lugar, o fim dos grandes ideais. Já que a História "acabou" (e isso é bem representado pela refrência claríssima à CIA e a Embaixada Russa, evocando a Guerra Fria), resta-nos simplesmente tocar a vida. Tudo se reduz a mera burocracia. Mais do que nunca a modernidade (avançada, agora dizem eles) mostra a sua "jaula de ferro".
O presente se reduz a vazio, os relacionamentos são totalmente deteriorados (representados pelas traições constantes e inúmeras), nenhum relacionamento duradouro é possível de ser mantido (mostrado pelas inúmeras mulheres "traçadas" por George Cloney - numa clara referência a Thomas de A Insustentável Leveza do Ser, que transou com praticamente todas as mulheres de Praga).
Além disso, temos a clara e evidentíssima crítica à academia, representada como o ápice da imbecilidade. Por quê? Tendo o homem perdido como meta os grandes ideais, que foram dissolvidos em nada, resta a ele somente o seu "si mesmo". E o seu "si mesmo" reduz-se ao corpo. Diante da ruína ao qual tudo se reduz, o corpo é a única realidade que - mesmo sendo uma massa compacta em eterna decomposição (Foucault) - parece ser eterna, como diz Bauman em Em Busca da Política (2000). Parece ser eterna em relação à fugacidade e obsolescência de todas as outras coisas na modernidade avançada, a começar pelos laços afetivos. A cena patética de Frances McDormand no consultório tentando fazer quatro cirurgias para "se reinventar" e todo o seu papel patético, ingênuo e solitário ao mesmo tempo, somado ao tipo idiota representado por Brad Pitty (ilustrando da melhor forma possível a geração MTV da eterna adolescência e imbecilidade) mostram a academia como o símbolo mais perfeito da estupidez que é o paradigma da sociedade pós-moderna.
O ex-espião da CIA (John Malkovich) é símbolo, junto com a sua mulher (Tilda Swinton) do casal na pós-modernidade: o que os une é o dinheiro e um bom emprego na burocracia estatal. Após essa perda, esta tenta divorciar-se dele "por ser idiota", e por fim, some com todo o seu dinheiro. A pateticidade é que ele descobre que ela lhe trai e mata por engano um cara que não tem nada a ver com a história, dado que estava no lugar errado na hora errada. Ela também representa junto com o gerente da academia, a revolta com a vida e a desesperança em relação a ela.
O "fio" de toda a história são as memórias de Osbourne Cox (John Malkovich), algo totalmente sem importância, dado que ele era do baixo escalão da CIA. Por causa destas memórias, que caem nas mãos de Chad (Brad Pitty) e Linda (Frances McDormand), inicia-se toda uma perseguição que culmina na morte de Ted (Richard Jenkins), morto por Cox (John Malkovich), que termina em coma, e Chad (Brad Pitty), morto por Harry (George Clooney). As "memórias" são devolvidas à CIA e Linda (Frances McDormand) garante não falar nada se a CIA pagar suas quatro cirurgias plásticas.
Esta tragédia pós-moderna é trágica inclusive no seu fim. Todo este drama é como se fosse nada, dado que "do alto do céu" (representado pelo Google Earth) todo o drama some, é como se fôssemos meras formigas, nada, pó, zero! Saí "com um gosto amargo na boca" justamente por isso: o filme sub-repticiamente afirma que "tudo é nada", ou seja, absurdo, a conclusão que todo pensamento non sense chega. É um tudo é nada que é desesperador. Se não há nada, por que há o drama? Por que há grito, se não haveria nada nem ninguém a nos ouvir?
Clarice Lispector disse: "Há o direito ao grito, então eu grito!" Eu penso que esse grito é a única possibilidade de não enlouquecer, é a única possibilidade de fazer a bolha na qual nos encapsulamos explodir, a única chance de romper com as nossas medidas mesquinhas, a única maneira de explodir os nossos limites. Esse grito é a plenitude da humanidade, o grito de que esse "si mesmo", essa adoração dessa "massa compacta que se decompõe sem cessar" é uma loucura, esse grito é o início da liberdade, é o sinal mais vivo de alguém que é realista. Houve um tempo que esse grito foi chamado de oração, e no qual o Natal era visto como a resposta mais potente e ao mesmo tempo imprevista a esse grito: desde estão não estamos sós com os nossos dramas. É a única possibilidade de esperança para a vida!

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Clarice Lispector

Hoje é aniversário de Clarice Lispector. Gosto muito de Clarice Lispector não somente por um gosto estético, literário, ou porque ela é a maior e mais profunda escritora do Brasil, gosto de Clarice porque tenho uma relação pessoal com ela. Eu posso dizer que Clarice Lispector, de uma certa forma, me introduziu no Mistério. Porque ela mesma diz em A paixão segundo G.H. "Se a 'verdade' fosse aquilo que posso entender - terminaria sendo apenas uma verdade pequena, do meu tamanho." Clarice nos introduz na nossa grandeza de homens, que é a aceitação do Mistério.
Quem é Clarice Lispector? Não me alongo em descrições meramente exteriores, onde nasceu (Ucrânia), em que ano (1920 - há alguns que dizem que foi em 1925), em que tipo de família (judia), onde morou (Recife - na colônia judaica, e no Rio), nem o que estudou (Direito), nem com quem casou (um diplomata) e quantos filhos teve (dois).
Quem é esta mulher? Esta é a pergunta que nasce quando se lê seus contos, ou livros, ou crônicas (ela foi jornalista também), quando se assiste a sua última entrevista na TV Cultura (em 1977, ano de sua morte), ou quando se visita uma exposição em sua homenagem (como eu fiz, maio do ano passado, em São Paulo).
Quem é Clarice Lispector? O que marca a sua obra? Qual a sua contribuição? Qual o seu mistério, qual a sua novidade?
A novidade de Clarice Lispector é a simplicidade, é o real, somente o real. Clarice é terrivelmente simples. Numa época na qual a complexidade é o que é valorizada, e com ela, as loucuras, as neuras, os traumas e as depressões; é a simplicidade que resplandece em Clarice.
Ela mesma disse: "as pessoas não me entendem porque eu sou simples". Clarice é de uma simplicidade que dói. Seus contos, novelas e romances são retratos muito enxutos e muito vivos do nosso cotidiano, da nossa vida simples, do nosso dia-a-dia. Mas Clarice tem um diferencial, ela não se limita a ser uma cronista que narra o que acontece no dia-a-dia da nossa existência, ela não torna a nossa existência uma mera clepsidra (clepsidra é um antigo relógio de água que o escritor Camilo Pessanha usa para batizar seu livro de 1926; num livro extremamente triste ele compara os instantes da nossa vida às gotas de água que caem da clepsidra: iguais em consistência e vazios em significado). Para Clarice, "o vazio tem o valor e a semelhança do pleno" e sua busca é pelo significado. Não é à toa que o título do seu primeiro romance é "Perto do Coração Selvagem" (faz lembrar o quadro Ícaro de Matisse, de 1943), que foi seguido por Água viva (clara referência ao Evangelho), A maçã no escuro (que é uma metáfora do drama do pecado - a maçã - e as conseqüências que adviriam deste - o escuro), e A Paixão Segundo o G.H. (que é uma sigla de "A paixão segundo o gênero humano", uma paródia de "a paixão segundo J.C." - Jesus Cristo).
O seu último romance, A hora da estrela, de 1977, começa assim: "Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e começou a vida". Este trecho, aparentemente tão simplório, esconde uma verdade profunda: "tudo começa com um 'sim'", o que significa que o começo de tudo é marcado por duas liberdades.
Uma das características das histórias de Clarice são as "revelações" dos significados. As histórias sempre acontecem no cotidiano, e de repente acontece um fato que "revela" a pessoa a si mesma, é a epifania (manifestação de algo). A epifania retira a nulidade do sentido do instante e dá ao instante o seu pleno valor e significado. Assim, o instante que seria vazio e sem sentido, como a clepsidra, adquire densidade e plenitude. Comparando-se Clarice Lispector e Camilo Pessanha, se entende aquilo que diz Luigi Giussani, que "o coração do homem é a encruazilhada entre o eterno (o infinito) e o nada". Estamos no fio da navalha entre o infinito (a plenitude) e o nada. Tudo vem de uma fonte misteriosa, que é viva, e anima tudo criado, ou tudo corre inexoravelmente para a morte, e como entrar em contato com esta fonte misteriosa que anima tudo criado?
O método - segundo Clarice Lispector - é o fato, um fato que suspende a aparente normalidade do cotidiano, o óbvio ao qual nós inexoravelmente nos remetemos. Clarice vem nos dizer que nada é óbvio. As coisas não são óbvias, eu não óbvio, a vida não é óbvia, e vem nos perguntar: o que sou eu? O que é a vida? O que é tudo? (como nos pergunta o belíssimo poema de Drummond A máquina do mundo).
Com esta finalidade ela usa de recursos estilísticos muitas vezes chocantes.
A Paixão segundo G.H. é o caso de uma mulher que chega em casa e ao fechar uma porta, esmaga uma barata, da qual sai a gosma. A mulher olha a gosma, sente uma atração inexorável e come a gosma. Quando ela faz isso, rompe com todos os padrões e tabus da nossa sociedade e entra em contato com o real propriamente dito, e a partir daí começa uma viagem de conhecimento do real que ela faz pelo fato de esmagar a barata e comer da gosma da barata. Pode parecer loucura comer a gosma da barata, mas numa certa época da história, também se acho estranho que um homem dissesse: "Se vocês não comerem a Minha carne e não beberem o Meu sangue não terão a vida em vocês mesmos". A mulher comeu a gosma da barata e chegou até à vida, para além das meras convenções sociais e daquilo que é meramente convenção humana. Por fim, vejam que coisa tremenda ela diz em seu romance maravilhoso que é A paixão segundo G.H.:
"Ah, perdi a timidez: Deus já é. Nós já fomos anunciados, e foi a minha própria vida errada quem me anunciou para a certa. A beatitude é o prazer contínuo da coisa, o processo da coisa é feito de prazer e de contato com aquilo de que se precisa gradualmente mais. Toda a minha luta fraudulenta vinha de eu não querer assumir a promessa que se cumpre: eu não queria a realidade. (...) Pois ser real é assumir a própria promessa: assumir a própria inocência e retomar o gosto do qual nunca se teve consciência: o gosto do vivo."
Mais uma outra coisa grandiosa nos é dita por Clarice ainda neste mesmo romance, evidenciando a sua atração e preferência por aquilo que efetivamente existe, ou seja, pela realidade:
"A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la – e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas – volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu."
E por fim, ela nos premia com o êxtase, que é, partindo da realidade, o reconhecimento do Mistério com a revelação da nossa dependência original, que nos coloca numa autêntica posição humana:
"O mundo independia de mim – esta era a confiança a que eu tinha chegado: o mundo independia de mim, e não estou entendendo o que estou dizendo, nunca! Nunca mais compreenderei o que eu disser. Pois como poderei eu dizer sem que a palavra mentisse por mim? Como poderei dizer senão timidamente assim: a vida se me é. A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro!"
Como disse São Paulo: "N'Ele - no Mistério - vivemos, existimos e somos" (At 17), e portanto dependemos, não somos autônomos, embora o queiramos ser.
Clarice Lispector é antídoto para as nossas banalidades, ela é introdução ao Mistério, presente que a grande alma russa (a Grande Mãe Rússia - ela é filha de judeus russos) dá para o Brasil. Sendo judia e membro do povo de Deus, Clarice tem uma percepção não só do Mistério, mas de Cristo e da realidade, como pouquíssimas pessoas. Ela é "a alma feminina de Dostoiévski", despida de todas as complicações e ideologizações, típicas do pensamento masculino. Nela só interessa o real, somente o real, o vivo, a realidade e o Mistério, Mistério que é Vida, vida que anima a realidade criada e é o sentido da mesma.

sábado, 6 de dezembro de 2008

Algumas reflexões antes do Natal

Acho que a 1ª e fundamental pergunta a se fazer é: o que fé? E o que é a razão? Porque senão a gente tende a pensar com base em preconceitos sutilissimamente impingidos a nós pelo poder. O que é a razão? Segundo o pensamento católico, razão é a capacidade de dar-se conta da realidade segundo a totalidade dos seus fatores. A mentalidade iluminista reduziu o conceito de razão a medida de todas as coisas (um conceito sofista, anterior a Sócrates, diga-se de passagem), enquanto que Santo Tomás na Suma Teológica define a verdade como a correspondência entre a inteligência e a realidade.
Qual o instrumento que Deus nos dá para o reconhecermos? A realidade! A realidade grita Deus, porque não se faz por si mesma. Diante da realidade, ou fazemos como Sartre, e escolhemos o nada, e portanto, o absurdo, ou reconhecemos que a realidade não se faz por si mesma, que se origina em uma fonte misteriosa. A esta fonte misteriosa, os povos chamaram de o Mistério tremendo e fascinante. Todas as religiões partem deste maravilhamento, de que o real não se faz por si e que vem de uma fonte misteriosa. Todas as religiões são uma tentativa do homem de chegar até o Mistério. Mas como diz Santo Tomás, o homem não consegue chegar à verdade sem grandes erros, e vemos de tudo, em quem conhece minimamente o universo religioso. E mesmo o não-religioso, porque, como diz o teólogo Romano Guardini, todos os movimentos do homem são em busca do "deus", e o que é mais sacrificado na modernidade avançada é a razão. Quanto mais a fé cristã diminui, é o irracionalismo que avança, e não o racionalismo. A tentativa de transformar a fé em mágica, a new age e diversos espiritualismos são a prova mais viva disso.
É necessária uma revelação, afirma Santo Tomás (e Platão no Fédon). Seria impossível o homem conhecer a Deus se Ele não se revelasse. O anúncio cristão é que Deus Se revelou. Ele respondeu ao grito do profeta Isaías: "Ah, Senhor! Se Tu rasgasses os céus e descesses!" (Is 61) E Ele rasgou! O nascimento de Cristo na noite de Natal é isso. Cristo é o Verbo - o Logos, a Razão - feita carne: Verbum caro factum est! (cf. Jo 1,14) O cristianismo é o caminho verdadeiro não tanto porque os outros são falsos, mas porque é o caminho traçado pelo próprio Deus.
Cristo permanece presente na Igreja. O método para conhecer Jesus é conhecer a Igreja. A Igreja é a contemporaneidade de Cristo. Ela é a esposa de Cristo, nela Cristo Se faz presente. Não há outro método para conhecer Cristo senão conhecer a Igreja. por isso, o Concílio Vaticano II a chama de "Sacramento - que significa sinal visível da graça invisível - de Cristo" (a Igreja torna Jesus presente). Como? Através de uma humanidade que seria impensável sem Cristo.
Além dos casos de martírios e santidade extraordinárias, e dos inúmeros milagres registrados na vida da Igreja ao longo de vinte e um séculos - e somente nela - mesmo na vida ordinária, habitual, comum, podemos ter exemplos: pensemos nas pessoas que consagram a sua vida a Cristo, vivendo em pobreza, virgindade e obediência por toda a vida, ou casamentos que duram a vida inteira, homens e mulheres que dedicam a sua vida inteira - muitas vezes com muito sacrifício - à própria família. Estas realidades não existiam antes do cristianismo. E à medida que o cristianismo declina, elas declinam junto com ele.
A fé - como diz o papa Bento XVI - é uma obediência de coração a uma verdade que nos foi revelada. Por quem? Por um outro. A fé é aderir ao que um outro diz. Quem é este outro? Cristo e a Igreja. A fé é aderir ao que Cristo e a Igreja dizem. Como pode ser razoável? Se eu olho a Igreja e vejo um algo a mais, uma humanidade plena e diferente para melhor, jamais observável em nenhuma religião - quando as conhecemos em profundidade reconhecemos especificidades presentes somente no cristianismo (como a palavra "graça" - que significa favor imerecido da parte de Deus para nós), e portanto podemos dizer: aqui tem algo, aqui habita o Mistério. E posso crer no que me dizem Cristo e a Igreja.
Quando Jesus multiplicou os pães e saciou a fome de cinco mil pessoas às margens do mar da Galiléia, eles queriam fazer de Jesus um rei porque pensaram: "agora, meus problemas acabaram com este cara!" Mas Jesus se retirou, e fugiu para a Sinagoga de Cafarnaum. A multidão foi atrás dele e ele disse: "Vocês vieram atrás de mim por causa do pão que eu dei pra vocês! Trabalhem não pela comida que perece, mas pela que dura até a vida eterna! O pão que eu darei é a minha carne, para a vida do mundo, porque se vocês não comerem o Meu corpo e o Meu sangue não terão a vida em vocês mesmos!" Aí todo mundo disse que ele era louco e foi embora. Qual foi a posição mais razoável, a de Pedro, que questionado por Jesus: "Vocês também não querem ir embora?", disse "Senhor, só Tu tens palavra que explicam, que dão significado à vida. Se formos embora, a quem iremos?", ou da multidão que fugiu só porque não entendeu? A fé é justamente dar crédito a esta correspondência que experimentamos. Se um cara faz um milagre, alimenta cinco mil pessoas com cinco pães e dois peixes, e depois diz: "Eu sou Deus! Eu sou o pão da vida! Sem Mim, nada podeis fazer!" É razoável ou não dar crédito a esse cara?
Mas tudo isso precisa da nossa razão, batalha que o papa Bento XVI vem travando desde Regensburg (2006). A nossa razão precisa ser alargada porque está obtusa e acanhada, e é incapaz de reconhecer o Mistério presente porque ele transborda todas as nossa medidas. Mas quem está certo? O Mistério que veio ao meu encontro por meio da Sua Amada Igreja - Jesus - ou os jornalistas, os intelectuais e os professores universitários, que o negam dia a dia? Quem é que me faz mais feliz, mais alegre, mais bom, melhor enfim, que me enche de esperança, de paz, de amor e vida? É razoável ou não dizer "sim" a Jesus? Eu O amo, porque Ele teve piedade do meu nada e salvou e salva a minha vida.

domingo, 16 de novembro de 2008

Pensamentos Ridículos

Escrevo esse post pensando na música do Cranberries, Ridiculous Thoughts, e inspirado na quarta-feira, onde fui debatedor no V SepAdm. Ali eu entendi o que são os pensamentos ridículos.
Pensamento ridículo é todo pensamento descolado da realidade, porque quando isso acontece, eu me torno prisioneiro da minha mente, eu me torno prisioneiro de mim mesmo. O cristianismo tem um nome muito preciso a isso. É o que a tradição cristã chama de "inferno".
Inferno é um grande não à vida, ao ser, às coisas, ou seja, à realidade, ao outro. O Inferno é a suprema alienação. Porque o homem não existe per-si (em outras palavras, não é Deus), o homem existe como uma relação, uma relação que lhe é vital, constitutiva. A realidade é para nós como o ventre da mãe para o feto, vital, constitutiva. Isso é tão verdadeiro que os santos chamavam os que negam a Deus como "escravos constrangidos de Deus", porque eu dependo de uma realidade, que é feita por um Outro. Eu não me dou a minha mãe, por exemplo. Sou constrangido a ser filho dela. Não posso não ser mais filho de minha mãe, isto é algo de definitivo, de eterno, para o qual não há mais escolha.
Para ter clareza dessas coisas, a grande e única coisa pedida é olhar a realidade. Nós somos salvos somente pela realidade e dentro da realidade. Por isso que S. Paulo dizia que a realidade é Cristo (Cf. Cl 1,17). O Mistério é a suprema realidade, como "R" maiúsculo.
Infelizmente, o que vi num dos artigos do SepAdm sobre a diversidade foi um monte de blá-blá-blás sem observação da realidade. O cientista Alexis Carrel dizia que muito raciocínio e pouca observação conduz ao erro, muita observação e pouco raciocínio conduz à verdade. Porque a verdade é uma evidência, é um fato na História, diz o Papa. A Bíblia é ainda mais simples, no Antigo Testamento diz: "A verdade é!", no Novo ela fala: "A verdade é a realidade!" Ou seja, são as coisas! É aquilo que existe, e que está na nossa frente, e à qual todos podem ter acesso! O cristianismo é o grande anúncio disto, ou como eu gosto de dizer, é a democratização do Mistério, e é uma educação do espírito a estar diante da realidade tal como ela é. O contrário disso é o que chamamos de pecado, sendo que o maior de todos é o orgulho!
A pessoa que falava em diversidade repetia visivelmente um monte de fórmulas esquemáticas, no meu entender vazias, porque não comparava o que dizia com as aspirações profundas do próprio coração - amor, beleza, bondade, justiça, paz, liberdade, felicidade.
Eu não gosto da palavra tolerância. Porque eu não quero tolerar ninguém, eu não quero suportar! Eu quero conviver, eu quero amar, quero ser amigo daqueles que eu encontrar no caminho da minha vida! Porque não me corresponde me justapôr às pessoas, como se fôssemos meros tijolos do edifício social, somos pessoas com exigência de Infinito! E a grande novidade da fé cristã é que o Infinito se fez homem, encarnou-se, é um homem que come e bebe! E por isso, ligou-se de modo indestrutível a todo e qualquer homem, que graças a isso é sinal e presença do Infinito! Cada pessoa que eu encontro é uma estrada para o Infinito! Como posso apenas me justapôr àqueles que são a estrada que o Infinito, que o Mistério me dá para chegar até Ele? Apenas me justapôr é muito pouco para mim, porque eu desejo o infinito!
O contrário da tolerância é o amor, e amor não é uma coisa romântica, implica muita dor e sacrifício! Sacrifício pelo próprio mal e erros, principalmente; mas também sacrifício pelas incompreensões alheias, para os quais a mera justaposição é a coisa mais cômoda!
Nós estamos diante do fio da navalha. A tolerância anda colada com o niilismo e é a ante-sala da barbárie e da guerra. A convivência, a amizade anda junto com a esperança, e é ante-sala da paz e da civilização!
Mas quem vai nos educar a isso? A realidade! O primeiro passo é explodir a prisão dos próprios pensamentos "ridículos", e adentrar o fascinante mundo do real!

terça-feira, 11 de novembro de 2008

A suprema exigência

Da minha viagem ao Recife me impressionaram várias coisas: a beleza da Veneza brasileira (que de fato ela é!), especialmente a Igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem. Mas o que mais me impressionou foi o albergue que eu fiquei, chamado de "Piratas da Praia". Nesse albergue, pelas paredes, e nos livros que tinha lá, em cadernos, sempre se falava em "felicidade". Era evidente que todos buscavam a felicidade, que é de fato, a suprema exigência humana.
E por que fui ao Recife? E por que - se Deus quiser - vou à Nova York em fevereiro? Por que fiz o que fiz e faço o que faço? É porque quero ser feliz! Eu sou exigência de felicidade, o meu coração bate, o meu sangue ferve por dentro das minhas veias exigindo a felicidade. E felicidade quer dizer infinito, porque eu sou exigência do Infinito. Que sou eu? Um nada que exige o infinito. Só isto já é a suprema prova que este infinito existe, como bem o reconheceu Shakespeare em Macbeth (ato V, cena 4): "um mundo sem Deus é uma fábula (uma mentira completa) contada por um idiota (irrazoável, pois sem Deus as "contas" do universo não batem) num acesso de raiva (ou seja, é pura violência)".


A Ressurreição: a resposta do Infinito à suprema exigência humana

Acabo de voltar do Hospital Aliança. Uma grande amiga minha, Silvana, está com a mãe na UTI em estado gravíssimo, no limiar da morte. Ali eu entendi o que é a Ressurreição. É impressionante enxergar o olhar e o rosto de Silvana. Há alguma coisa ali - naquela ante-sala de UTI - que é diferente do normal, uma paz, uma serenidade, e até uma alegria. Lá torna-se visível algo não apenas meramente humano, que possibilita isto: este "Algo" dentro de "algo" é o próprio Infinito. É o Infinito que se faz presente.
Na França, o Papa disse em setembro que a verdade é um fato dentro da História. Maria Zambrano disse que a verdade é o alimento da vida! A verdade que é este fato é Jesus! E Jesus ressuscitou na manhã da Páscoa, destruindo a morte, isto é, a finitude, para sempre! Jesus ressuscitou para dizer que nada do que somos se perderá! É isso que se chama "salvação". Sem a Ressurreição, resta-nos sermos engolidos pela voragem inexorável do nada! Mas não! Jesus ressuscitou! Silvana me deu testemunho disso hoje, 11 de novembro! É a realidade que grita: Ele está vivo!

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Eloá instrumentalizada

O que eu mais acho impressionante nas ideologias é o quanto elas aproveitam da realidade para justificarem a si mesmas. O movimento do homem sadio, do homem são é deixar-se corrigir pela realidade, seja ela qual for, enquanto que o homem ideológico perverte a realidade para justificar as suas teorias. A teoria, necessariamente é algo parcial, é uma sintetização da realidade que sempre precisa de uma correção. Quem é cientista sabe muito bem que a ciência corrige-se a si mesma, junto com a filosofia, rumando à verdade, àquilo que é. Verdade, veritas, aletheia é a correspondência entre a minha inteligência (nous) e a realidade, as coisas (rei). Por isso, devemos sempre deixar nossas teorias serem constantemente corrigidas pela realidade. Quando nós, numa pretensão de "dar lições à realidade", temos a pretensão de substitui-la por uma teoria que a explique de uma vez por todas, temos o fenômeno da ideologia. Ideologia é um sistema de pensamento, uma teoria sistematizada que pretende dar ao homem uma explicação total da realidade. O homem não consegue viver numa tensão diante do real. A primeira coisa que a ideologia mata é o conhecimento. Porque o conhecimento vem do choque entre a minha consciência e a realidade. Se eu já tenho a explicação total da realidade, eu me nego a receber o impacto do real, e deixo de conhecer, empobreço-me enquanto pessoa e enquanto homem de ciência. O progresso da ciência depende sempre desse choque, desse impacto com o desconhecido que vai tornando-se conhecido. A tentação da torre de marfim da ideologia é muito grande. Não é à toa que o Livro da Sabedoria, na Bíblia apresenta a idolatria, que é a pretensão de tomar a parte como o todo, como a origem de todo o mal, porque fecha o homem à realidade e à "Realidade" (com "R" maiúscula) suprema, que é o mistério de Deus.


Este é o motivo porque também os ídolos das nações serão julgados,
porque, na criação de Deus, eles se tornaram uma abominação, objetos
de escândalo para os homens, e laços para os pés dos insensatos.
É pela idealização dos ídolos que começou a apostasia, e sua
invenção foi a perda dos humanos.
Eles não existiam no princípio e não durarão para sempre;
a vaidade dos homens os introduziu no mundo. E, por causa disso,
Deus decidiu a sua destruição para breve.
(...)
Como se não bastasse terem errado acerca do conhecimento de
Deus, embora passando a vida numa longa luta de ignorância, eles dão
o nome de paz a um estado tão infeliz.
Com efeito, sacrificando seus filhos, celebrando mistérios ocultos, ou
entregando-se a orgias desenfreadas de religiões exóticas,
eles já não guardam a honestidade nem na vida nem no casamento,
mas um faz desaparecer o outro pelo ardil, ou o ultraja pelo adultério.
Tudo está numa confusão completa - sangue, homicídio, furto,
fraude, corrupção, deslealdade, revolta, perjúrio,
perseguição dos bons, esquecimento dos benefícios, contaminação
das almas, perversão dos sexos, instabilidade das uniões, adultérios e
impudicícias -
porque o culto de inomináveis ídolos é o começo, a causa e o fim de
todo o mal. (Sb 14,12-14.22-27)


Toda essa conversa foi pra falar de Eloá. Recebi o e-mail de um amigo dizendo que as feministas estão taxando o fato de "feminicídio". Pra mim, se trata sim, da morte de uma mulher, de uma menina, mas antes de tudo, da morte de uma pessoa humana. De uma pessoa que tem um valor infinito justamente pelo fato de ser uma "cópia" desse mesmo infinito, da mesma forma que os embriões e fetos que as feministas advogam a morte. A ideologia feminista é exemplo do que falei acima: não se olha a realidade, o fato de uma pessoa estar viva e aspirar à vida, e não à morte. O homem naturalmente aspira à vida e não à morte, tanto é que já vejo muitos defensores do aborto dizerem que fazem isso em "defesa da vida" e que não têm prazer na morte do feto, mas que isso é algo "necessário" em virtude da "saúde pública". Pelo menos já é uma posição mais humana. Mas a vida é um fato, existe, não se reduz a ideologias ou a sistemas de pensamento ou a engenharias sociais. Diante da vida, não se pode mover-se tendo uma receita (que é a ideologia, ideologia é uma receita). Diante da vida, só se pode mover-se com comoção, como alguém se move quando outro está se afogando, ela não teoriza sobre ou vai buscar uma receita para salvar o outro, simplesmente pula no mar e salva quem está morrendo. Por isso, o Servo de Deus João Paulo 2º disse que não será uma fórmula, ou seja, uma ideologia a nos salvar, mas uma pessoa, alguém que pule no mar e nos salve de nos afogarmos. Para os pagãos, o mar é símbolo do caos e da desordem, por isso, o mar virou símbolo do paganismo, e por autonomásia, deste mundo. Nós, cristãos, temos "a" novidade por excelência. No mar das nossas vidas, e do nosso mundo, no qual estávamos nos afogando, alguém - o Verbo divino, a Razão-Amor - já "pulou" para nos salvar, entrando dentro da História na noite de Natal, para instaurar uma nova cultura, da vida e de amor à realidade, e portanto às pessoas. Será que nos nós estamos dispostos a abandonar os nossos ídolos, as nossas criações mentais e nos aventurarmos na aventura iniciada pelo próprio Infinito, quando por puro amor, resolveu descer a esta Terra, para salvar-nos?
Esta é a pergunta: queremos as trevas da idolatria, nas quais a morte de Eloá é instrumentalizada politicamente, ou a novidade do amor, na qual a morte de Eloá se torna perdão e vida, como para as sete pessoas que receberam os órgãos dela? A escolha está em nossas mãos.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Agnósia

Anteontem assisti o filme "Ensaio sobre a cegueira", baseado na obra de Saramago (1995). O filme é algo excepcional; fidelíssimo ao livro homônimo ele consegue ao mesmo tempo subverter os cânones hollywoodianos e os do cinema "cult" (que eu, particularmente, gosto).
Ensaio sobre a cegueira parte de uma situação insólita: de repente todos os habitantes de uma cidade começam a ficar cegos, de uma cegueira "branca", leitosa (onde o doente vê não a escuridão, mas uma névoa branca em sua frente), de uma doença, que depois é diagnosticada como agnósia.
Agnósia remonta claramente a agnosticismo, é uma metáfora muito clara do agnosticismo, que é um método de pensamento através do qual as pessoas, observando a realidade, são incapazes de reconhecer o Mistério, e dessa forma, reconhecer a si mesmas (pois o homem só tem consistência em si mesmo, ontologia, no Mistério, fora disso ele é nada e pó, como nos atesta a sociologia do conhecimento e o marxismo).
As pessoas começam a ficar cegas e os seus instintos começam a aflorar, como se o fato delas não mais poderem ver as desinibisse da moral. Na verdade, o que o filme passa é que o homem, sem os grandes ideais, nada mais é do que um animal, do que uma mera formiga, escrava dos instintos ou do poder. É interessante ainda o fato de uma pessoa permanecer vendo: a esposa do médico. Ela, vendo toda aquela situação, se torna serviço. Subvertendo o ditado que diz que em terra de cego, quem tem um olho é rei, ela, tendo um olho, vendo, se torna serva, indicando o caminho para o controle e o possível fim da barbárie.
Eu achei também muito interessante a referência a São Paulo. Ele foi convertido sendo cego por uma luz, porque vendo os cristãos, foi incapaz de reconhecer o Senhor Jesus, precisando se tornar cego para converter-se e voltar a enxergar. Há uma clara referência ao Evangelho: os homens estão incapazes de ver, e por isso ficaram cegos, porque vêem, mas na verdade não enxergam. o filme claramente nos diz: somos cegos com olhos!
Eu achei também muito interessante uma coisa que foi dita sobre os relacionamentos: antes da epidemia de cegueira, as pessoas não se relacionavam porque tinham medo de se perder, tinham medo de perder a sua individualidade e pessoalidade, e também pelo fato da auto-suficiência: achando que bastavam-se a si próprias (o que é um engodo terrível), se iludiam pensando que não precisavam de ninguém. A cegueira os mostrou o que de fato eram: dependentes uns dos outros e revelou a eles que não se perderiam se se tornassem amigos, mas que esse era o caminho para "se ganharem uns aos outros".
Vi muita gente falar mal do filme: me disseram que é chocante, que tem muita miséria, que não tem beleza etc. O que querem? Desconhecem o homem e o seu mal? Eu acho que este é um filme para nos sacudir e para nos forçar a pensar, para nos ferir, porque nós estamos acostumados a ver casos como o de Eloá e já se torna algo que nem mais nos sensibliza e muito menos comove e mobiliza. Penso que Ensaio sobre a cegueira cumpriu sua missão. Espero que ele abra os nossos olhos para o seguinte fato: ou pomos diante de nós grandes ideais ou nos reduziremos a formigas, fazendo emergir a barbárie neste mundo e aumentar ainda mais a injustiça, a tristeza e o cinismo.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Eloá

Escrevo esse post ouvindo Zombie e pensando nesse mundo no qual habita a injustiça, e também a tristeza, mas acima de tudo, o cinismo. Enquanto uma vida - uma vida! - foi perdida, as pessoas se metem em investigações cínicas para saber quem foi o culpado, ou pior ainda falando sobre o fato do pai da menina ser um foragido da polícia. Eu ouvi até gente dizer "aqui se faz, aqui se paga, matou tantos, e agora a filha foi morta" ... um absurdo completo!
Não consegui reprimir as lágrimas assistindo pela TV o enterro de Eloá e vendo como este mundo, como bem diz o Evangelho jaz no maligno, no mal, na mentira, no ódio. Porque as pessoas se odeiam umas às outras, se ignoram e se repelem umas às outras, e querem pôr toda a culpa num jovem de 22 anos como o ex-namorado de Eloá, Lindembergue. Não gosto de teorias que vitimizam, mas digo com certeza que ele nada mais é do que fruto desta sociedade que vive a época mais terrível da História, época na qual a depressão se tornará em breve, a segunda causa de morte no mundo. A depressão é algo terrível, eu já vi uma pessoa morrer de depressão, em 2004, e tenho amigos que sofrem com este, que é o mal do século XXI, a era mais gélida de todos os tempos. Dante, no canto XXXIV da Divina Comédia, afirma que "o coração, o centro do inferno é feito de gelo":


À parte era chegado, onde imergida
Cada alma em gelo está (tremo escrevendo),
Bem como aresta no cristal contida.
(...)
Do aflito reino o imperador eu via:
Do gelo acima o seio levantava.
A um gigante igualar eu poderia,

(Divina Comédia, Inferno, Canto XXXIV, vv. 10-12; 28-30)

O inferno ser de gelo significa que lá não há movimento, tudo é parado, é morte, é frio e desolação. Tudo isso porque o inferno nada mais é que um grande "não" ao ser e à vida, que podemos dar individualmente, mas que pela primeira vez na História, estamos dando coletivamente como sociedade: como é que um homem permite que a menina Nayara voltasse a estar com o seqüestrador se ele olhasse minimamente que fosse para o valor - infinito - da vida dela? Essas são questões que a desvalorização da vida, a cultura da morte nos impõe ... a vida não vale mais nada, e acabamos sendo, como afirmou Sartre, "formigas". Encontrei uma mulher revoltada no domingo com esta situação: "hoje em dia ninguém mais se preocupa com ninguém! O ser humano não é disso! Formiga é que é assim! Você pisa em uma, a outra cheira, e depois vai embora!" Os gatos também são assim, se dois gatos irmãos estão num telhado, um deles cai e morre, o que o outro faz? Vai cheirar, e depois sai, como se nada tivesse acontecido. Mas nós não somos assim, embora estejamos vivendo assim. É essa indiferença que tem gerado a depressão, o desespero e o desequilíbrio, porque o homem é exigência de infinito, de ser amado, acolhido e abraçado, o homem é espera do infinito, é espera do amor, e quando não encontra, murcha, fenece e morre.
Outra coisa que pouquíssima gente se deu conta. Pelo menos a mãe e o irmão de Eloá são evangélicos. "Eloá" em hebraico significa "Deus". É tremendo como uma metáfora profundíssima. Nossa sociedade está assim, porque Deus mesmo está sendo assassinado. Nietzsche disse: "Deus está morto - e completa - e fomos nós que o matamos". A morte de Eloá é poderosíssima para demonstrar que a sociedade está assim porque nós, nós assassinamos Deus, e portanto a própria Eloá. João Paulo 2º disse, na mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1985, que quando nós assassinamos Deus, é o homem que morre a seguir. Porque o homem só tem valor, só tem o ser se o reconhecemos como relação direta com o Mistério, com o infinito, e portanto mais do que meras formigas.
A saída nos é dada pela própria mãe, que segue o que a grande filósofa Hannah Arendt reconheceu como a grandeza do cristianismo: o perdão. A mãe de Eloá perdoou o assassino. Eu chorei ontem vendo aquilo! Que mulher grandiosa! Dava pra ver que era verdade, que não era só encenação! E por que ela conseguiu perdoar? Porque já se reconhecia perdoada! A grandeza do cristianismo é que ele não é uma doutrina, uma teoria, é um fato, é Alguém que te diz: "Eu te amo, eu te perdôo!", que introduz o amor no mundo, pois para o homem, ser amado significa ser perdoado. Fiquei muito comovido com o irmão de Eloá que disse que aquilo se tratava de um desígnio de Deus para salvar a vida de sete pessoas, e que tinha ficado feliz com o fato de Eloá viver em sete pessoas! Meu Deus, como estou comovido! A solução para o mundo é mesmo o amor, que só pode vir da fé, como tantos têm nos testemunhado: Cleuza e Marcos Zerbini, Rose e Vicky de Uganda, e agora a mãe e o irmão de Eloá. De fato, um outro mundo é possível: esta é a vitoria que venceu o mundo, o inferno, a depressão e o nada: a nossa fé!

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

A perfeição

O que me tranqüiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.

O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fração de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.

Tudo o que existe é de uma grande exatidão.
Pena é que a maior parte do que existe
com essa exatidão
nos é tecnicamente invisível.

O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.

Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição.

In: A Descoberta do Mundo, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, p. 226

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Moby Dick: um evangelho em forma de romance

por Nivaldo Cordeiro
Vice-Presidente do Conselho Fiscal do CIEEP (Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista)

Faço aqui um breve comentário, mais no intuito de divulgar a obra entre aqueles que não leram, ou leram na juventude e deixaram de sorver o vinho armazenado em velhos odres, o melhor de todos. Ler o livro de Herman Melville (1819-1891), “Moby Dick”, depois de tantos anos, é uma grande aventura para a alma. Sim, o livro fala mesmo é de iniciação mística, da morte e ressurreição pensadas nos termos cristãos. É atualíssimo, não obstante a sua narrativa ser um tanto antiquada. Todo o texto fala de uma única pessoa, o próprio autor, e para compreender a epopéia é preciso lê-lo de trás para frente, mas isso não é possível numa primeira vez. É obra para os espíritos velhos, de todas as idades, sobretudo para quem já passou do meio-dia da vida.

Os personagens principais não coincidentemente recebem nomes bíblicos. Ismael, o filho de Abraão com a serva de Sara, Agar, dá nome ao personagem principal e narrador, o único que sobrevive à aventura heróica. Acab, personagem casado com Jezabel, “o que era mal aos olhos do Senhor, mais do que todos os que foram antes dele” (1Reis 16,30), dá nome ao segundo personagem em hierarquia de importância. Jezabel era aquela que matava os profetas do Senhor. Elias, diante de Acab e de todo o povo, pergunta: “até quando coxeareis entre dois pensamentos?” (1Reis 18,21), Acab, o personagem, era coxo, pois o Leviatã havia lhe devorado uma das pernas.

É evidente, para quem conclui a leitura, que Acab é a velha personalidade de Ismael que precisava morrer para renascer, sendo Ismael o único que poderia sobreviver à louca aventura da alma. O título do Epílogo não deixa margem à dúvida: “E só eu escapei para contar-te”, citação extraída no Livro de Jó. Em “Moby Dick” podemos ler: “Considerai tudo isso, e voltai-vos depois para essa verde, suave e docílima terra; considerai os dois, o mar e a terra: não descobris estranha analogia com algo dentro de vós? Pois assim como esse pavoroso oceano rodeia a terra verdejante, assim também na alma do homem jaz uma Taiti insular, cheia de paz e alegria, mas cercada de todos os horrores da existência semi-conhecida. Deus te guarde! Não desatraques dessa ilha, não podes voltar jamais”. Claro que Melville refere-se à dialética entre o Eu e o Inconsciente, para usar a terminologia junguiana.

Em outra parte podemos ler: “Oh! Meus amigos, mas isso é matar o homem! E, todavia, isso é vida. Pois nem bem nós, mortais, com longas labutas extraímos do vasto corpo desse mundo seu escasso, mas valioso espermacete; nem bem, com fatigada paciência, nos limpamos das sujeiras desse mundo e aprendemos a viver aqui, nos puros tabernáculos da alma; nem bem fazemos isso, quando – ‘Lá esguicha ela’ – jorra a alma, e lá velejamos para combater outro mundo e atravessar de novo a velha rotina da vida jovem”. Esse trecho deixa claro que a pesca da baleia é uma metáfora para o crescimento espiritual e que a baleia pode ela mesma ser identificada com a própria alma, posto que é um símbolo da transformação do inconsciente.

Outro personagem que precisamos sublinhar é Quiqueb, a sombra primitiva e canibal de um cristão civilizado, o canibal caçador de cabeças que as vendia empalhadas, chegando a dar uma delas para Ismael. Cabeças cortadas e empalhadas por um canibal primitivo são apenas uma maneira que o autor encontrou para mostrar o quando vale a função pensamento e mesmo o intelecto, desgrudado de sua plenitude com as demais funções psicológicas, como vemos no mundo moderno. Em outra parte do “Moby Dick”, duas cabeças de baleia são penduradas no navio, quais esfinges. Ainda uma vez notamos a preocupação de Melville em denunciar a unilateralidade do intelecto no mundo ocidental. Quiqueb é a Sombra de Ismael porque com ele divide o leito, fato estranhíssimo para um homem viril se não for considerado um recurso narrativo, para mostrar o conteúdo psicológico do mesmo. Dormimos com a nossa sombra agarrada às nossas costas, para o nosso desconforto e a nossa redenção. Em outra parte, Quiqueb e Ismael são amarados com cordas para cumprir tarefas arriscadas, de tal sorte que um só poderia viver se o outro também vivesse, formando uma unidade. Um dos capítulos dá ênfase a Quiqueb, que é chamado de forma sintomática de “Um amigo íntimo”.

O início da narrativa começa em uma noite escura e fantasmagórica, recurso também usado por Dante Alighieri (1265-1321) para iniciar o seu grande poema de iniciação – “A Divina Comédia” – para relatar os fatos da alma. Os tempos também são bíblicos: três anos de viagem, três dias de caçada, tempo que se liga diretamente a terceiro dia da paixão e morte de Cristo, quando ocorre a sua ressurreição. O autor, por esse recurso, também faz da sua aventura a máxima aventura do Cristianismo. Ele é salvo no final por um salva-vidas na forma de ataúde. A morte é seguida por ressurreição. Ismael é resgatado pelo veleiro “Raquel”, alusão àquela que não queria ser consolada, pois que seus filhos já não viviam, personagem do livro de Jeremias.

E o paralelo com o livro de Jonas mais do que salta aos olhos. Esse livro profético mantém interesse especial por dois motivos. O primeiro é que é uma narrativa estranhíssima e, a rigor, não é exatamente profético. Jonas foge de uma missão dada por Deus, mas dela não consegue se livrar. O segundo porque é o primeiro instante na história da Revelação que a Justiça divina é suplantada por sua Misericórdia. Por isso é um dos livros capitais da Bíblia. A metáfora do homem que por três dias entra no ventre da baleia e depois é devolvido a terra é uma prefiguração da história de Cristo, de sua morte e ressurreição.

A pesca da baleia e seus navios foram magistralmente utilizados por Melville como metáfora. O baleeiro, por exemplo, tem um forno, que pode ser considerado uma espécie de inferno das profundezas, onde ardem as almas penadas.

É notável a ausência de personagens femininos, que aparecem apenas em esposas, mães e filhas ausentes, e também nos nomes de outras embarcações (“Raquel”, “A Virgem”). Mas o elemento feminino é, sobretudo, sublinhado pelo oceano, as profundezas da função sentimento tão pouco desenvolvida nas pessoas do tipo pensamento. As cabeças empalhadas de Quiqueb mostram a compensação da consciência unilateral do autor, assim como o mar profundo a grandeza exaltada da função feminina por excelência, a sentimento. É uma epopéia masculina.

É óbvio que a leitura do livro pressupõe certo conhecimento da Bíblia, sem o qual muitas passagens não terão sentido e muito da sutileza psicológica não poderá ser percebida. “Moby Dick” é um evangelho escrito na forma de romance.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Carta a Diogneto

"Os cristãos não se distinguem dos demais homens, nem pela terra, nem pela língua, nem pelos costumes. Nem, em parte alguma, habitam cidades peculiares, nem usam alguma língua distinta, nem vivem uma vida de natureza singular. Nem uma doutrina desta natureza deve a sua descoberta à invenção ou conjectura de homens de espírito irrequieto, nem defendem, como alguns, uma doutrina humana. Habitando cidades Gregas e Bárbaras, conforme coube em sorte a cada um, e seguindo os usos e costumes das regiões, no vestuário, no regime alimentar e no resto da vida, revelam unanimemente uma maravilhosa e paradoxal constituição no seu regime de vida político-social. Habitam pátrias próprias, mas como peregrinos: participam de tudo, como cidadãos, e tudo sofrem como estrangeiros. Toda a terra estrangeira é para eles uma pátria e toda a pátria uma terra estrangeira. Casam como todos e geram filhos, mas não abandonam à violência os recém-nascidos. Servem-se da mesma mesa, mas não do mesmo leito. Encontram-se na carne, mas não vivem segundo a carne. Moram na terra e são regidos pelo céu. Obedecem às leis estabelecidas e superam as leis com as próprias vidas. Amam todos e por todos são perseguidos. Não são reconhecidos, mas são condenados à morte; são condenados à morte e ganham a vida. São pobres, mas enriquecem muita gente; de tudo carecem, mas em tudo abundam. São desonrados, e nas desonras são glorificados; injuriados, são também justificados. Insultados, bendizem; ultrajados, prestam as devidas honras. Fazendo o bem, são punidos como maus; fustigados, alegram-se, como se recebessem a vida. São hostilizados pelos Judeus como estrangeiros; são perseguidos pelos Gregos, e os que os odeiam não sabem dizer a causa do ódio. Numa palavra, o que a alma é no corpo, isso são os cristãos no mundo. A alma está em todos os membros do corpo e os cristãos em todas as cidades do mundo. A alma habita no corpo, não é, contudo, do corpo; também os cristãos, se habitam no mundo, não são do mundo. A alma invisível vela no corpo visível; Também os cristãos sabe-se que estão neste mundo, mas a sua religião permanece invisível. A carne odeia a alma, e, apesar de não a ter ofendido em nada, faz-lhe guerra, só porque se lhe opõe a que se entregue aos prazeres; da mesma forma, o mundo odeia os cristãos que não lhe fazem nenhum mal, porque se opõem aos seus prazeres. A alma ama a carne, que a odeia, e os seus membros; Também os cristãos amam os que os odeiam. A alma está encerrada no corpo, é todavia ela que sustém o corpo; Também os cristãos se encontram retidos no mundo como em cárcere, mas são eles que sustêm o mundo. A alma imortal habita numa tenda mortal; Também os cristãos habitam em tendas mortais, esperando a incorrupção nos céus. Provada pela fome e pela sede, a alma vai-se melhorando; também os cristãos, fustigados dia-a-dia, mais se vão multiplicando. Deus pô-los numa tal situação, que lhes não é permitido evadir-se."

(século II d.C. - escrita entre 120 e 150 d.C.)

domingo, 5 de outubro de 2008

A percepção do devir

Alguns fatos têm me provocado a me lançar agora nessas "meditações políticas". O primeiro foi ontem, quando quase fui agredido fisicamente na Avenida Sete e na Vitória. E hoje, o fato de ter sido presidente da seção 223 da Zona 001, na Faculdade de Direito e ter encontrado o professor Carlos Milani e a professora Marie-Françoise Durand (da Science-Po, Paris)caminhando na Graça. Milani é política, Durand é política. Hoje o meu dia foi embebido em política. Como não pensar em política se esta, como diz Michel Foucault está até em nosso corpo e "quem não gosta de política é governado por ela".
O grande risco de tudo isso é o que eu já chamei em alguns meses de redução política, reduzir o mundo da vida somente à política. Da mesma forma que o neoliberalismo (a loucura com método - a crise americana nos deixa de cabelo em pé quanto à loucura do cassino global) tenta reduzir tudo à economia (por incrível que pareça o marxismo faz a mesma coisa quando põe a ontologia do homem no seu fazer-se, o homem produzindo-se a si mesmo por meio do trabalho), também a ideologia pode reduzir tudo à política, tudo ao poder.
E hoje eu estava pensando em como eu estava nestas eleições e minha relação com a política. Tudo isso porque eu não espero mais a salvação da política, como antes, nem mais de um lado nem de outro. Nem da esquerda, mas também não da direita. Comentando com um amigo entusiasta da direita, eu disse a ele: "pra mim não existe nem a esquerda nem a direita, mas somente a Cruz". Ele ficou escandalizado quando ouviu isso, e de uma certa forma, nem eu mesmo estava entendendo o que eu estava dizendo, coisa que eu só entendi agora e por isso estou escrevendo este post.
Eu saio triste destas eleições, é um fato. Não porque meu candidato provavelmente não vai ganhar (por que se fosse, e daí? Saramago, inteligentemente quando ganhou o prêmio Nobel de Literatura, disse: 'ganhei o Nobel! E daí?'), mas porque de que adianta eu ganhar o mundo inteiro e perder a mim mesmo? Que adianta "ganhar as eleições" e não fazer nada de participar da velha luta pelo poder que é tão velha quanto andar pra frente, a tal ponto de Aristóteles chamar o homem de "animal político"? Que adinata "ganhar" e "me perder"? Porque a única forma de não me perder é a afirmação do ser, e portanto, da liberdade.
Vendo o debate da Rede Bahia na quarta e percebendo a re-arrumação do poder na Bahia após a morte de ACM, eu percebo cada vez mais claramente o que é este fluxo do poder e o devir, e como o indivíduo, se a sua pessoalidade não é afirmada (e o é somente por meio da religiosidade, somente!) é somente pó e cinza no decorrer da História e do avanço impessoal e implacável do devir. E como o devir é terrível, porque a afirmação do devir é a afirmação de um poder gigantesco (a "Idéia" que é o Deus hegeliano todo-poderoso e implacável e que por fim reduzirá todos nós a nada em nome da afirmação de si própria).
Na minha seção votou o irmão de João Amazonas (que foi durante muitos anos presidente nacional do PC do B), de 92 anos, e uma mulher disse: 'ele só vota no PC do B'. Eu olhei para ele e o respeitei do alto dos seus noventa e dois anos e pensei 'meu Deus, esse cara apostou a vida nisso, se o comunismo estiver errado ele está fudido, porque apostou a vida numa mentira, e se estiver certo, também está fudido, porque vai morrer e não o verá realizado, é injusto!' E eu me enchi de tristeza...
Minha cabeça está assolada de "pensamentos políticos", eu diria, porque mesmo esperando a Cidade Celeste, desejo contribuir para edificar a Cidade Terrena, a afirmação da Cidade Celestial não pode ser um pretexto para alienar-me da Cidade Terrestre. Mas aí meu espírito se povoa de dúvidas: o que é mesmo o poder? Como se expressa e acontece? Quais os limites a ele e quem lhe impõe? Como pode acontecer a justiça em relação ao Estado? (porque o Estado é um bem, embora carregue dentro de si uma ambivalência monstruosa que pode degenerar em totalitarismo) E como viver política com liberdade, sem esperar dela a salvação da vida, colocando-a em seu justo lugar na totalidade do mundo da vida? E como defender, propagar e fazer crescer a democracia, que é como diz Churchill "a pior forma de governo, exceto todas as outras que têm sido tentadas de tempos em tempos"? Bom, essas são somente inquietações, para as quais não tenho respostas no momento. Quem sabe, com o tempo, elas vão aparecendo e sendo divulgadas neste humilde espaço...

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

A equação inexistente

Não acho que seja por acaso que vou escrever isso hoje. Há exatos cem anos morria Machado de Assis, o maior gênio da literatura nacional e um dos maiores da literatura universal, em pé de igualdade com Dostoiévski. Pois, bem Machado vem com esta máxima: "verdadeiramente, há só uma desgraça: é não nascer." (in: Memórias Póstumas de Brás Cubas, cap. CXVII, pg. 202. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1971). Ou seja, ele está afirmando que a vida é bem, é positiva, vale a pena.Eu digo isso porque tive uma conversa na sexta-feira com uma pessoa que defende o aborto, apontando-o como uma solução para o problema da saúde pública.

A Igreja se opõe a tudo que vá de encontro à vida, como expressa na sua Constituição Pastoral Gaudium et Spes (Alegria e Esperança):

« Tudo quanto se opõe à vida, como seja toda a espécie de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho, em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis. Todas estas coisas e outras semelhantes são infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a civilização humana, desonram mais aqueles que assim procedem, do que os que padecem injustamente; e ofendem gravemente a honra devida ao Criador » (GS, 27)

O que me impressionou foi que ela me perguntou: "e aí, Dimitri? Qual é a solução?" Eu me dei conta de uma coisa muito simples, mas muito importante: não existe uma equação, uma fórmula para resolver o problema do mal. Não existe uma receita para combater o mal. Este é o problema de todas as ideologias, sejam elas de esquerda, como o marxismo; ou de direita, como o nazi-fascismo. Não há uma solução global para o problema do mal.

Isso é verdade porque o mal é gerado pela liberdade humana, que pode escolher sempre e muitas vezes escolhe o mal, e eu mesmo não estou livre disto. Mesmo intelectuais ateus como Sartre disseram "o homem é condenado a ser livre". E quantas vezes eu mesmo, querendo fazer o bem, acabo fazendo o mal?

A realidade é complexa a este ponto porque cada pessoa é uma individualidade, uma liberdade. A única possibilidade de "resolver com uma equação" o problema do mal seria o controle total das liberdades: o totalitarismo, que foi o que vimos que aconteceu com as ideologias nazi-fascista e comunista, que tentaram "consertar" o mundo. O difícil é conviver com o mal, com o mal próprio e o do mundo ao redor. É muito difícil, às vezes, se dar conta de que por mais que façamos, o mundo sempre terá mendigos. Jesus foi realista ao extremo quando disse: "Vocês sempre terão pobres com vocês".

Diante disso, ou temos uma posição niilista, cínica, que não acredita em nada, ou podemos ter uma outra visão. O cristianismo é uma novidade total, porque não só é contra a morte, mas vence a morte "de dentro": reconhece e afirma que o mal existe. O mal existe e vem de onde? O mal é terrível, mas é muito simples: O mal é um grande "não": um grande "não" ao ser, à vida, à Deus, que se traduz numa palavra muito precisa "ódio". Jesus, então, vem não explicar uma doutrina ou uma teoria, mas é aquele que vem dizer "sim" ao ser, à vida e a Deus, para que nós possamos dizer também, ou seja, para que possamos amar. Porque amar não é conivência, amar é afirmar o outro pelo simples fato dele existir, amar é a gratuidade total, é o bem por excelência. A resposta do cristianismo não é uma sutil equação que resolva os problemas do mundo, como Habermas muito habilmente tenta fazer (e é justíssimo, mas sempre vai faltar algum fator que ele não vai conseguir captar), mas é vencer o mal "por dentro", com o "sim", ou seja, com o amor. Se a origem do mal é o "não", a resposta a ele só pode ser o "sim". A forma como temos para "vencer o mal", a começar pelo nosso próprio, do qual muitas vezes temos vergonha e dor é o "sim": sim à nossa própria existência em primeiro lugar, que não é nem um pouco óbvia (o mal sempre começa com um "ódio a si"), às pessoas que encontramos, à realidade com a qual nos deparamos, ao Mistério que fez e faz tudo. Os santos são a mais admirável "prova" da eficácia do "sim". Cleuza Zerbini, em São Paulo, não tem nenhuma teoria total sobre o mundo, mas graças ao sim dela às necessidades que viu em sua frente, mais de 40 mil (!) jovens estão estudando em São Paulo.

A forma que temos para "resolver" o problema do aborto é o surgimento de uma cultura da vida, uma valorização do ser, da realidade, daquilo que existe. A figura da Virgem Maria é a mais potente inimiga do niilismo hoje, porque Maria é a perfeita anawim (do hebraico pobre, aquela que espera somente em Deus). Eu tenho em casa uma imagem que um amigo meu trouxe de Lourdes (França) e me consola e me enche de esperança ver a Virgem de mãos unidas rezando por nós (digo isso porque fiquei muito triste com o que aconteceu ontem em Ondina). Maria é a mais terrível inimiga do mal porque disse "sim". Ela é o sinal mais potente de adesão ao ser, à vida, aquilo que existe, à realidade. Maria é a mais terrível inimiga do mal, porque é humana, e como mulher disse "sim". Em 1858, ela apareceu em Lourdes para lembrar o mundo de uma realidade há muito esquecida: o que a Igreja chama de "pecado original". O pecado original não é uma lenda, é a incapacidade estrutural que temos para nos manter firmes nos nossos desejos de bem. São Paulo assim se expressa "não faço o bem que quero, mas o mal que não quero". (cf. Rm 7,14-8,17) O comunismo deu errado porque não considerou isso. Não adianta inventar um sistema perfeito que deixe de levar em consideração a liberdade humana, que pode sempre optar pelo mal (com todas as suas conseqüências). Por isso João Paulo 2º, cheio de sabedoria, escreveu a Maria esta belíssima oração, que eu contraponho aqui ao que estão distribuindo por aí com a imagem dela, pedindo pelo aborto, como a mais nova panacéia para resolver todos os problemas do mundo. Tal como o Holocausto, há setenta anos.

"Ó Maria,
aurora do mundo novo,
Mãe dos viventes,
confiamo-Vos a causa da vida:
olhai, Mãe,
para o número sem fim
de crianças a quem é impedido nascer,
de pobres para quem se torna difícil viver,
de homens e mulheres
vítimas de inumana violência,
de idosos e doentes assassinados
pela indiferença
ou por uma presumida compaixão.
Fazei com que todos aqueles que crêem
no vosso Filho
saibam anunciar com desassombro e amor
aos homens do nosso tempo
o Evangelho da vida.
Alcançai-lhes a graça de o acolher
como um dom sempre novo,
a alegria de o celebrar com gratidão
em toda a sua existência,
e a coragem para o testemunhar
com laboriosa tenacidade,
para construírem,
juntamente com todos os homens
de boa vontade,
a civilização da verdade e do amor,
para louvor e glória de Deus Criador
e amante da vida." (João Paulo 2º, Encíclica O Evangelho da Vida, p. 210)

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

A defesa do aborto como um atentado à inteligência

No dia 28 de setembro, domingo, acontecerá em Ondina um piquenique pela legalização do aborto. Eu vi até agora três cartazes desta iniciativa, e além da abominação de ser a maior de todas as violências (a violência cometida contra o ser mais inocente e indefeso, que é o não-nascido), a defesa do aborto revela-se também como um atentado brutal, não só à vida, mas à inteligência.
Tomemos por exemplo, um dos cartazes, este diz assim: "mulheres não são mães em potencial". Esta frase é simplesmente a frase mais imbecil que eu já ouvi em toda a minha vida. É claro que toda a mulher é mãe em potencial, e todo homem é pai em potencial. Basta conhecer um mínimo de lógica para se dar conta disso. A potencialidade - ou num nome que eu tendo a preferir, virtualidade - pode não se concretizar, é fato, mas dizer que uma mulher não é mãe em potencial é o mesmo que dizer que uma semente de carvalho é uma cerejeira em potencial. Ou seja, as pessoas que estarão domingo defendendo a legalização do aborto, das duas uma, ou são débeis mentais completas ou acham que nós o somos, querendo nos impingir tamanho absurdo e estapafúrdia completa.
Outra afirmação diz que "a criminalização do aborto ofende a diversidade religiosa". Ora, o erro dessa posição é taxar a posição contrária ao aborto como religiosa e dogmática. Isto não é verdade! Ser contra o aborto tem a ver com a razão e com uma visão de homem e uma consideração pelo valor da vida, não se refere a um dogma! É claro que o cristianismo que afirma em seu mandamento basilar "amar ao próximo como a si mesmo", "dar a vida por seus amigos", "não matar", jamais aceitaria esta forma brutal e bárbara de assassinato contra os seres mais inocentes e indefesos (justificada pelo chamado "direito de escolha"). Mas se formos levar esta afirmação deste cartaz em consideração com todas as suas implicações, deveríamos em nome da "tolerância religiosa" aceitar novamente os sacrifícios de humanos que eram oferecidos pelos astecas (que sacrificavam pessoas vivas arrancando o seu coração para oferecê-lo ao deus Sol para que este garantisse as colheitas). Ninguém diz, na lavagem cerebral que ocorre em nossas escolas, mas foi justamente a presença da Igreja na América Latina a partir do século XVI que acabou com os sacrifícios humanos em massa (revividos somente no holocausto nazista e no horror comunista - que matou 1.200 vezes mais[!] que a Inquisição em período semelhante de tempo). A Igreja é fator de civilização, e na medida em que a sua presença decai na sociedade e seu impacto cultural - que significa vida, amizade e construção - decai, retorna a barbárie e o horror, que estas pessoas estarão celebrando domingo em Ondina. Me espanta ver tantos esforços, dinheiro e energia para garantir a liberalização do assassinato dos seres mais inocentes e indefesos que existem: os não-nascidos.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Lavagem cerebral nos jovens

Os jovens estudantes brasileiros são vítimas, por meio do ensino da História nas nossas escolas, da mais baixa, mais descarada, mais vil lavagem cereberal que se possa imaginar. Lavagem cerebral esta, em especial contra a Igreja e a civilização ocidental. Não se precisa "dourar a pílula" e encobrir o que de fato aconteceu. A Igreja não tem medo de seus erros humanos ao longo dos seus vinte e um séculos de existência. Mas não se fala nada da positividade da presença da Igreja na História. Como disse Reinaldo Azevedo, "o mundo é melhor com a Igreja Católica", e eu posso dizer que a minha vida é melhor com a Igreja Católica, por isso eu a amo e desejo que ela se expanda o mais que puder, para que aconteça na Terra a civilização do amor. As palavras de Reinaldo Azevedo resumem bem meu pensamento:


"No fim das contas, sei bem o que não suportam na Igreja Católica: é o primado da liberdade. É a afirmação tácita de que você é livre para escolher o seu destino, o seu caminho. E que toda escolha acarreta conseqüências. Isso a que chamam constantemente “culpa”, que vem associado à Igreja, eu costuma chamar de consciência. Não é fácil ser católico. O culto à religião propriamente talvez seja hoje, como sempre foi, obra de uma minoria abnegada. Para a maioria, a religião permanece como um norte ético. Eu mesmo não me digo católico sem uma ponta de constrangimento. Porque não me acho bom o bastante pra isso.

Mas sei que o mundo é bem melhor com a Igreja Católica. E saúdo a palavra de seu primeiro pastor. Onde quer que a instituição esteja hoje presente, se não foi tomada pela heresia — outra constante de sua história —, está levando uma mensagem de paz, de esperança, de aposta na vida. De fato, isso parece ser uma coisa insuportável. Sob certo ponto de vista, ninguém deveria ter a ousadia de querer ser tão bom.

Se há coisa que jamais faltou ao demônio — eu o tomo aqui como uma metáfora — é o culto à desconfiança. Se um dia tiverem tempo e oportunidade, leiam Les Cahiers de Monsieur Ouine — ou simplesmente Monsieur Ouine, do escritor católico francês, que morou no Brasil, Georges Bernanos. “Ouine” é uma soma de “Oui” (sim) e “Non – que tem em francês a variante gramatical “ne” (não). O demônio é justamente a indistinção entre o Mal e o Bem, ou é o Mal que é Bem, ou o Bem que é Mal. É, em suma, a empulhação disso que chamam por aí de “dialética” — quando querem convencê-lo a abrir mão de seus princípios para o seu próprio bem."

(artigo O que não suportam na Igreja Católica? A liberdade e a consciência., publicado em seu blog em 09/05/2007, por ocasião da visita de Bento XVI ao Brasil)

Ou seja, pesando na balança os bens e os "males" da Igreja (incluindo a Inquisição - da qual não tenho medo de falar), é evidente que os bens são muito maiores. Senão a Igreja não existiria mais. Por que alguém continuaria a ser atraído (porque a Igreja cresce por atração e não por proselitismo) por uma instituição que somente proíbe isto ou aquilo (segundo a mentalidade dominante) e não ofereceria nada em troca? - sendo que esse algo em troca é justamente o amor, a liberdade e a paz!...
No dia 6 de setembro fui panfletar em Novos Alagados convidando as pessoas para a inauguração da nova igreja da região, com o nome de Igreja Jesus Cristo Ressuscitado, construída pela AVSI (Associação de Voluntários para o Serviço Internacional) e consolidando 20 anos da presença cristã na região. Eu já trabalhei em favelas durante quase dois anos, na região do Nordeste de Amaralina, antes de começar o mestrado, e vou em Novos Alagados todos os sábados me encontrar com as pessoas que moram lá. Posso dizer que os pobres e favelados não são como teorizam os intelectuais da esquerda. Tinha gente que agradecia a Deus o fato da nova igreja dizendo que há muito pedia isso a Deus. Eu me dei conta de que a Igreja não é uma construção nossa ou algo da qual nos apropriamos, mas a resposta de Deus mesmo aos mais profundos desejos do coração do homem. Que os simples - como em Novos Alagados - conseguem reconhecer aquilo que os burgueses radicais e arrogantes que habitam nossas universidades não reconhecem, detestam, pisam e se possível até destroem. Vi num vídeo que assisti há 4 anos, o depoimento de uma senhora da cidade de Novosibirsk, na Sibéria contando como os comunistas destruíram a Igreja na região dela e a fé inabalável de sua mãe que disse: "Os padres voltarão, porque Deus não pode ser destruído". Ela contou isso mostrando a sua paróquia com o novo padre que chegou nos anos 1990 e que revitalizou a vida cristã na região. No ano passado, Bento XVI o nomeou Arcebispo de Moscou (Rússia). Ou seja, o comunismo pode lutar contra a Igreja - a sua maior inimiga - mas será esmagado, porque está lutando contra Deus e este não pode ser destruído.

Propaganda nazista contra o cardeal Pacelli, futuro Papa Pio XII, nos anos 1930, acusando-o de amizade com judeus e comunistas

Um exemplo muito evidente da lavagem cerebral que é feita nos estudantes brasileiros pelos professores de História, em sua maioria, marxistas e ateus, é a aproximação entre as figuras de Hitler e do Papa Pio XII. Como quem vence conta a História, e até pouco tempo atrás a Igreja estava perdendo feio no quesito de domínio cultural, quem venceu (ou seja, o ateísmo, o marxismo, o burguesismo radical etc) estava contando a História (errada - diga-se de passagem). O Papa Pio XII foi então taxado como o Papa nazista, ao passo que na verdade Hitler não só o condenava, como até o tentou seqüestrar e matar. Uma imagem vale mais do que mil palavras - como o que aparece acima - e uma propaganda nazista contra o Papa Pio XII taxando-o de "amigo" de judeus e comunistas, evidencia que este não estava ligado a Hitler como falsamente se propaga nas escolas brasileiras para tirar a fé das pessoas. Pio XII, como católico, cristão que era, de fato, salvou milhares de judeus e comunistas da barbárie nazista acolhendo-os nas congregações católicas de Roma. O que me impressiona de verdade é a leviandade com a qual se tratam os temas. É uma verdadeira estratégia para retirar a fé das pessoas e colocar no lugar delas o comunismo e o burguesismo radical. Enquanto a Igreja é total e descardamente desacreditada, não se fala absolutamente nada sobre os mais de 100 milhões de mortos nos campos de concentração comunistas, e absolutamente nada sobre os incalculáveis sofrimentos causados pelo burguesismo radical - da qual Marta Relaxa e Goza Suplicy é o maior símbolo - em matéria de solidão, desespero, depressão, drogas e suicídios (eu mesmo já vi uma pessoa morrer de depressão e esta está totalmente associada ao avanço do burguesismo radical pós-1968 (que é a pior forma de niilismo "o outro que se lasque" - no popular). Tudo isso pra mim só evidencia um fato muito concreto: o mundo pode estar ruim hoje, mas este seria muito pior sem a Igreja.

sábado, 13 de setembro de 2008

Sobre um certo "mundo novo"

Uma das coisas que mais me surpreende hoje é além da falta de profundidade com a qual as pessoas falam as coisas, a leviandade presente. Há alguns dias eu ouvi me falarem - do alto da sua capacidade exegética - que a Bíblia havia sido alterada milhões de vezes (sic!) Anteontem, li despautérios completos acerca das células-tronco e coisas do gênero. O detalhe é que as pessoas não mais põem nada em crítica e aceitam tudo o que a mentalidade dominante lhes impinge sem questionar nada, e o pior de tudo tachando a si mesmas como "livres pensadoras", "emancipadas" e assim vai.
Um livro muito interessante para esclarecer o nosso mundo hodierno é o livro Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, escrito em 1931 (sic!)
Por que eu falo dele?
Justamente pelo fato da Igreja é contrária à fecundação artificial, pública e oficialmente desde 1968 quando o papa Paulo VI publicou a Encíclica Humanae Vitae (Vida Humana), na qual posicionou-se contrário não só à fecundação artificial, como ao controle artificial da natalidade (é bom frisar o termo artificial).
Quando a Igreja toma certas posições polêmicas ela o faz somente com um objetivo: a defesa do humano, do homem. É acusada pelos modernos de "obscurantista", mas quando Paulo VI declarou inaceitável a fecundação artificial ele sabia muito bem dos riscos futuros que ela implicava: um deles a proliferação de inúmeros embriões fecundados que estão atualmente congelados e para os quais não se sabe o que fazer (até aparecem as ditas pesquisas com as células-tronco embrionárias).
O que está em jogo é uma concepção de homem. Para a Igreja, o homem tem um valor infinito, imensurável, por ser relação direta com o Mistério e além disso ter como potencialidade a consciência de si. Por isso, o menor homem vale mais do que todo o cosmos. Existe uma outra mentalidade que se intitula moderna, para a qual o homem não vale por si [como relação com o infinito], mas vale somente da sua relação com o Estado. Para a modernidade, é o Estado que dá dignidade às pessoas e só devem viver as pessoas que o Estado aceita dignas de viver, sabe-se Deus com quais critérios (instáveis e mutantes). Mas isso que se disfarça como modernidade é na verdade o retorno do pensamento do Império Romano, onde só uma espécie de cidadão - o civis romanus - tinha todos os direitos. A idéia de dignidade humana, e de que todos têm os mesmos direitos é uma idéia cristã e que só tomou corpo com o avanço da Igreja, e que decai na medida em que esta mesma presença da Igreja na vida da sociedade decai, em virtude da apostasia que estamos presenciando.
Admirável mundo novo é muito interessante porque mostra como seria a vida em países totalmente "modernos" e dominados pelo Estado. na verdade, Huxley faz uma crítica mordaz e feroz aos totalitarismos comunista e nazista. E é impressionante como muito do que vivemos hoje foi antecipado nos anos 1930 como conseqüência do pensamento eugênico e nazista de engenharia social: a sexualidade desvinculada do amor, o fim da família e da reprodução natural, o fim da amizade, cada pessoa sendo somente um apêndice ao funcionamento da sociedade e do Estado, a terrível reprodução em laboratório em massa (na qual o ser humano é posto na esfera da produção), a eutanásia, o abandono dos idosos, o consumismo generalizado, o esquecimento da tradição, a censura, o totalitarismo, enfim, o horror, o horror...
E nós não estamos longe de tudo isso, pois muita coisa do que Huxley previu já aconteceu: a primeira foi a pílula, a revolução sexual (e o desvinculamento desta do amor), a reprodução artificial, a legalização do aborto, as pesquisas com células-tronco... e tudo isso é tratado como "modernidade". Não é, isso é o retorno ao mundo pré-cristão, do tempo do Império Romano, quando o homem valia nada e era escravo do poder. A maior prova do horror que é tudo isso é a destruição dos relacionamentos |(em especial os de amizade). Na encíclica Dives in Misericordia (A Misericórdia Divina), João Paulo 2º falou que a maior ameaça hoje ao planeta não são as catástrofes ambientais ou nucleares, mas a destruição do humano. E a destruição do humano se dá pela destruição dos relacionamentos, das amizades, porque o humano é construído dentro dos relacionamentos.
Tudo isso é pregado como o supra-sumo da novidade e o Paraíso na Terra. Huxley mostra bem como seria este paraíso que a gente já começa a experimentar com o avanço da droga, da depressão, do desespero, da violência e dos suicídios. E mais uma vez, tudo em nome do bom, do belo e do que há de melhor. E com centenas de páginas de acadêmicos para justificar!
Interessante o trecho do prefácio da segunda edição que o próprio Huxley escreveu, ficando surpreso com o fato de ele mesmo ver as coisas que antecipou no livro (ele morreu em 22/11/1963). Segue abaixo o que diz o próprio Huxley porque fala melhor que eu, sobre o novo totalitarismo e a nova escravidão mundial (travestido de modernidade, liberdade de escolha e côngeneres...):
"Um estado totalitário realmente eficaz seria aquele em que o executivo todo-poderoso constituído de chefes políticos e de um exército de administradores, controlassem uma população de escravos que não precisassem ser forçados, porque teriam amor à servidão. Fazê-los amá-la é a tarefa atribuída, nos atuais estados totalitários, aos ministérios da propaganda, editores de jornais e professores. (...) O amor da servidão não se pode estabelecer senão como resultado de uma revolução profunda e pessoal nas mentes e corpos humanos. (...) Com a restrição da liberdade política e econômica, em compensação, tende a crescer a liberdade sexual. E o ditador (...) fará tudo para encorajar essa liberdade. Em conjunto com a liberdade de sonhar acordado sob a influência de drogas, o cinema e o rádio ajudarão a reconciliar os vassalos com a servidão que é o seu destino. (...) Na verdade, a menos que escolhamos a descentralização e o emprego da ciência aplicada não como o fim cujos meios seriam os seres humanos, mas como meios para produzir uma competição de indivíduos livres, temos apenas duas alternativas de que nos podemos valer: certo número de totalitarismos nacionais e militarizados, tendo como raiz o terror da bomba atômica e como conseqüência a destruição da civilização (ou, se a guerra for limitada, a perpetução do militarismo); ou então um totalitarismo supranacional, proveniente do caos social resultante do rápido progresso tecnológico em geral e da revolução atômica em particular, e desenvolvendo-se debaixo da necessidade da eficiência e estabilidade como a tirania- bem-estar da Utopia. É só pagar e escolher." Aldous Huxley, no prefácio de Admirável Mundo Novo, 1946.