quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Moby Dick: um evangelho em forma de romance

por Nivaldo Cordeiro
Vice-Presidente do Conselho Fiscal do CIEEP (Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista)

Faço aqui um breve comentário, mais no intuito de divulgar a obra entre aqueles que não leram, ou leram na juventude e deixaram de sorver o vinho armazenado em velhos odres, o melhor de todos. Ler o livro de Herman Melville (1819-1891), “Moby Dick”, depois de tantos anos, é uma grande aventura para a alma. Sim, o livro fala mesmo é de iniciação mística, da morte e ressurreição pensadas nos termos cristãos. É atualíssimo, não obstante a sua narrativa ser um tanto antiquada. Todo o texto fala de uma única pessoa, o próprio autor, e para compreender a epopéia é preciso lê-lo de trás para frente, mas isso não é possível numa primeira vez. É obra para os espíritos velhos, de todas as idades, sobretudo para quem já passou do meio-dia da vida.

Os personagens principais não coincidentemente recebem nomes bíblicos. Ismael, o filho de Abraão com a serva de Sara, Agar, dá nome ao personagem principal e narrador, o único que sobrevive à aventura heróica. Acab, personagem casado com Jezabel, “o que era mal aos olhos do Senhor, mais do que todos os que foram antes dele” (1Reis 16,30), dá nome ao segundo personagem em hierarquia de importância. Jezabel era aquela que matava os profetas do Senhor. Elias, diante de Acab e de todo o povo, pergunta: “até quando coxeareis entre dois pensamentos?” (1Reis 18,21), Acab, o personagem, era coxo, pois o Leviatã havia lhe devorado uma das pernas.

É evidente, para quem conclui a leitura, que Acab é a velha personalidade de Ismael que precisava morrer para renascer, sendo Ismael o único que poderia sobreviver à louca aventura da alma. O título do Epílogo não deixa margem à dúvida: “E só eu escapei para contar-te”, citação extraída no Livro de Jó. Em “Moby Dick” podemos ler: “Considerai tudo isso, e voltai-vos depois para essa verde, suave e docílima terra; considerai os dois, o mar e a terra: não descobris estranha analogia com algo dentro de vós? Pois assim como esse pavoroso oceano rodeia a terra verdejante, assim também na alma do homem jaz uma Taiti insular, cheia de paz e alegria, mas cercada de todos os horrores da existência semi-conhecida. Deus te guarde! Não desatraques dessa ilha, não podes voltar jamais”. Claro que Melville refere-se à dialética entre o Eu e o Inconsciente, para usar a terminologia junguiana.

Em outra parte podemos ler: “Oh! Meus amigos, mas isso é matar o homem! E, todavia, isso é vida. Pois nem bem nós, mortais, com longas labutas extraímos do vasto corpo desse mundo seu escasso, mas valioso espermacete; nem bem, com fatigada paciência, nos limpamos das sujeiras desse mundo e aprendemos a viver aqui, nos puros tabernáculos da alma; nem bem fazemos isso, quando – ‘Lá esguicha ela’ – jorra a alma, e lá velejamos para combater outro mundo e atravessar de novo a velha rotina da vida jovem”. Esse trecho deixa claro que a pesca da baleia é uma metáfora para o crescimento espiritual e que a baleia pode ela mesma ser identificada com a própria alma, posto que é um símbolo da transformação do inconsciente.

Outro personagem que precisamos sublinhar é Quiqueb, a sombra primitiva e canibal de um cristão civilizado, o canibal caçador de cabeças que as vendia empalhadas, chegando a dar uma delas para Ismael. Cabeças cortadas e empalhadas por um canibal primitivo são apenas uma maneira que o autor encontrou para mostrar o quando vale a função pensamento e mesmo o intelecto, desgrudado de sua plenitude com as demais funções psicológicas, como vemos no mundo moderno. Em outra parte do “Moby Dick”, duas cabeças de baleia são penduradas no navio, quais esfinges. Ainda uma vez notamos a preocupação de Melville em denunciar a unilateralidade do intelecto no mundo ocidental. Quiqueb é a Sombra de Ismael porque com ele divide o leito, fato estranhíssimo para um homem viril se não for considerado um recurso narrativo, para mostrar o conteúdo psicológico do mesmo. Dormimos com a nossa sombra agarrada às nossas costas, para o nosso desconforto e a nossa redenção. Em outra parte, Quiqueb e Ismael são amarados com cordas para cumprir tarefas arriscadas, de tal sorte que um só poderia viver se o outro também vivesse, formando uma unidade. Um dos capítulos dá ênfase a Quiqueb, que é chamado de forma sintomática de “Um amigo íntimo”.

O início da narrativa começa em uma noite escura e fantasmagórica, recurso também usado por Dante Alighieri (1265-1321) para iniciar o seu grande poema de iniciação – “A Divina Comédia” – para relatar os fatos da alma. Os tempos também são bíblicos: três anos de viagem, três dias de caçada, tempo que se liga diretamente a terceiro dia da paixão e morte de Cristo, quando ocorre a sua ressurreição. O autor, por esse recurso, também faz da sua aventura a máxima aventura do Cristianismo. Ele é salvo no final por um salva-vidas na forma de ataúde. A morte é seguida por ressurreição. Ismael é resgatado pelo veleiro “Raquel”, alusão àquela que não queria ser consolada, pois que seus filhos já não viviam, personagem do livro de Jeremias.

E o paralelo com o livro de Jonas mais do que salta aos olhos. Esse livro profético mantém interesse especial por dois motivos. O primeiro é que é uma narrativa estranhíssima e, a rigor, não é exatamente profético. Jonas foge de uma missão dada por Deus, mas dela não consegue se livrar. O segundo porque é o primeiro instante na história da Revelação que a Justiça divina é suplantada por sua Misericórdia. Por isso é um dos livros capitais da Bíblia. A metáfora do homem que por três dias entra no ventre da baleia e depois é devolvido a terra é uma prefiguração da história de Cristo, de sua morte e ressurreição.

A pesca da baleia e seus navios foram magistralmente utilizados por Melville como metáfora. O baleeiro, por exemplo, tem um forno, que pode ser considerado uma espécie de inferno das profundezas, onde ardem as almas penadas.

É notável a ausência de personagens femininos, que aparecem apenas em esposas, mães e filhas ausentes, e também nos nomes de outras embarcações (“Raquel”, “A Virgem”). Mas o elemento feminino é, sobretudo, sublinhado pelo oceano, as profundezas da função sentimento tão pouco desenvolvida nas pessoas do tipo pensamento. As cabeças empalhadas de Quiqueb mostram a compensação da consciência unilateral do autor, assim como o mar profundo a grandeza exaltada da função feminina por excelência, a sentimento. É uma epopéia masculina.

É óbvio que a leitura do livro pressupõe certo conhecimento da Bíblia, sem o qual muitas passagens não terão sentido e muito da sutileza psicológica não poderá ser percebida. “Moby Dick” é um evangelho escrito na forma de romance.

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