segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Tragédia americana

Estamos num deserto. Tiros são disparados contra crianças inocentes numa cidade americana, 28 pessoas morrem. Por alguns instantes somos tirados de nosso torpor habitual, até voltarmos a ele novamente. Me surpreende que alguém atribua o acontecido a um "maluco", como se a simples loucura pudesse explicar o fato. A loucura poderia ser uma explicação se este fato fosse isolado, mas chacinas em escolas americanas perpetradas por jovens têm sido uma constante nos últimos anos, o que é sinal de uma coisa mais do que o mero acaso da loucura.

Buscar explicações a nível sociológico como fez Michael Moore, no filme Tiros em Columbine, no qual ele atribui essa violência à excessiva exposição dos americanos à propaganda sobre armas não basta. A meu ver, a única explicação para esta tragédia é uma explicação a nível civilizacional. Nossa crise é uma crise de civilização. É a nossa civilização ocidental que está em crise, é o sujeito humano gerado por esta civilização que está em crise.

Nós damos por óbvio o valor da dignidade humana hoje, mas o primeiro povo no qual a pessoa humana passou a ter um valor foi o povo hebreu. É comovente ler a Sagrada Escritura e perceber que nela não existe nem um resquício dos sacrifícios humanos cruentos, presentes em todas as civilizações pagãs. Pelo contrário, a Bíblia começa com o Anjo de Deus parando Abraão que iria sacrificar o seu filho em imolação a Deus. Em seu lugar, é sacrificada uma ovelha. Todo o Antigo Testamento é uma condenação contínua do homicídio, do infanticídio e dos sacrifícios humanos. Inúmeras vezes, Deus se lamenta porque parte do Seu povo ainda vai oferecer seus filhos queimados em sacrifício ao deus Moloc. A plenitude dessa valorização do humano acontece em Cristo, e hoje, a vida humana em si mesma é reconhecida como sagrada, inviolável, inalienável em si mesma, única, irrepetível. Esta é uma conquista da nossa civilização.

Tal como as invasões bárbaras que foram acontecendo sucessivamente em meio à fragilização contínua do Império que garantia a continuidade da civilização, vemos hoje a todos os lados, o ataque à nossa civilização. A evidência maior disso é o ódio generalizado contra o papa Bento XVI. O ódio ao papa nada mais é do que o ódio a Cristo, pois o papa não faz alusão a outra coisa que não seja o próprio Jesus de Nazaré e a tudo o que veio dele.

O rapaz que deu os tiros em Newtown, Connecticut não é apenas um louco, é alguém para o qual a vida não vale nada, não significa nada, nem a vida dele, nem a de sua mãe, e muito menos a vida daquelas crianças e de suas famílias. É o niilismo nu e cru, em ato, pois esta é a consequência mais lógica desta postura diante da realidade. "O coração do Inferno é feito de gelo", dizia Dante (Inferno, XXXIV). A única possibilidade de fazer frente a isso é o nosso coração que clama diante de um fato como esses. Se o coração se rebela, é porque está vivo e ainda há esperança. Há muito mais entre o céu e a terra do que nos promete o nosso niilismo pós-moderno.

Temos de defender, no meio de toda esta crise, a nação americana, porque hoje é a nação americana que carrega a civilização ocidental. A nação americana, apesar de toda propaganda contra ela é boa, dissemina ainda hoje, a ideia do valor da dignidade da pessoa humana, em meio ao niilismo que vem da Europa. O filósofo francês Alexis de Tocqueville, nobre na França pós-queda da Bastilha, foi em viagem no século XIX à América entender como lá acontecia a democracia (enquanto a França se degladiava em lutas intestinas intermináveis). Chegou à seguinte conclusão:

"Procurei a chave para a grandeza da América nos seus portos ..., nos seus campos férteis e florestas sem fim, nas suas minas ricas e vasto comércio mundial, no seu sistema de ensino público e instituições de ensino. Busquei-o no seu Congresso democrático e na sua Constituição incomparável. Não foi antes de eu ter ido às igrejas da América e ouvido os seus púlpitos inflamados com a justiça que eu entendi o segredo do seu gênio e poder. A América é grande, porque a América é boa, e se a América alguma vez deixar de ser boa, a América deixará de ser grande."

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

O desafio do milênio


Ao convocar o Ano da Fé, o Papa Ratzinger entra numa verdadeira batalha gnoseológica contra uma cultura que vem se assentando há cinco séculos, pelo menos. O marco dessa cultura é o Discurso do Método, de René Descartes, onde o autor propõe o princípio da dúvida sistemática como ponto de partida. Já que não é possível ter certeza a priori sobre as coisas, então devemos partir do princípio da dúvida sistemática para construirmos então as nossas certezas. Todo esse movimento cartesiano foi uma busca da emancipação do homem da Igreja, o homem deveria "aprender a pensar por si mesmo", chegar à "maioridade". Tudo o que nós chamamos de "modernidade" foi a longa luta que o homem desenvolveu, ao longo de cinco séculos para libertar-se da tutela do Papa e da Bíblia. A tragédia da nossa época é que filosofias como essas deixaram os círculos filosóficos e chegaram ao senso comum do povo, das pessoas. Ou seja, vivemos imersos numa cultura segundo a qual não é possível chegar a ter certezas e a maior evidência disso é a incerteza nos relacionamentos. Uma incerteza que gera a fragmentação e a liquidez pós-moderna, segundo a qual é impossível chegar a certezas.

No ínterim dessa cultura que hoje é hegemônica, o Papa lança o "Ano da Fé", e faz o desafio a todos sobre a certeza, e como chegar verdadeiramente a um conhecimento. A mim a coisa que mais me marca no acontecimento cristão é perceber a quantidade de pessoas que deram (e continuam dando) a vida por causa desse acontecimento. Me marca o tipo de certeza que essas pessoas têm acerca da realidade e do que aconteceu com elas.Vivemos numa época em que para muitos a fé é uma palhaçada, uma superstição, ou um consolo para aguentar as durezas da vida. O Papa lança o desafio afirmando o contrário: a fé na verdade é um método de conhecimento, um método que se apoia numa testemunha. Apoiar-se na testemunha não é como pensou "Descartes" estar sob uma tutela, ou como pensou Kant, estar ainda na menoridade, mas é na verdade, tornar-se adulto, pois um homem torna-se adulto não por seus próprios esforços, mas apoiado no testemunho de outros homens adultos de que a vida vale a pena ser vivida. A crise atual de tanta gente é essa: faltam testemunhas que testemunhem a positividade da vida, de que esta é grande, bela e de que vale a pena ser vivida. Apoiar-se na testemunha é apoiar-me com todo o meu eu, inteligência e afeto, pois preciso reconhecer que a testemunha é digna de confiança. Isso não é estar sob tutela ou na menoridade, mas é humildade, a humildade que nasce da verdade, é reconhecer-se anão nas costas de gigantes, e sobre estas costas olhar a vastidão da realidade, do mundo e da História.


sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Aparecida


Uma das graças maiores que tive na vida foi o fato de ter ido ao Santuário de Aparecida. O Padre Quevedo, famoso por desbaratar pseudomilagres, especialmente por meio da parapsicologia, da qual é autoridade mundial, já havia falado que Aparecida é um lugar divino, ou seja, um lugar onde realmente houve uma manifestação do Mistério, do numinoso ali. Vi isso com os meus próprios olhos quando lá estive, há dois anos, na solenidade de comemoração dos 293 anos da aparição de Maria no Rio Parnaíba, em 1717. É um espetáculo esplêndido, numa época cética e pós-cristã ver romeiros caminhantes há dias nas estradas, uma multidão inumerável de pessoas agradecendo, ex-votos; é impressionante ver a evidência da presença de Maria, de suas graças e de suas bondades. Faço minha a pergunta que os Anjos, olhando uns para os outros, se fazem: "Quem é essa?" (Ct 6,10)

Aparecida é um dos tantos títulos de Nossa Senhora ligado ao tema da escravidão, como o título de Nossa Senhora das Mercês. Impressiona ver que numa colônia marcada pela escravidão, Nossa Senhora aparece enegrecida, envolvida numa rede de pescadores, que estavam desesperados porque não estavam achando peixes para levar para um fidalgo que estava hospedado nas paragens de Garatinguetá. Impressiona ver a pequenez da imagem e o abraço que faz a todo o Brasil, todo o povo acorrendo. Em Aparecida se vê a ternura de Deus e a preferência que Ele tem pelo povo brasileiro. Sempre me marcou saber que  quando Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil consagrou esta terra à Nossa Senhora da Esperança (a imagem de Nossa Senhora da Esperança é muito bonita: Nossa Senhora carrega Jesus no colo e ele brinca com o Espírito Santo, que está em forma de pomba). Desde sempre o nosso país é o país do futuro.

Devo minha fé à Nossa Senhora. Há mais de quinze anos, quando minha avó estava para morrer, vi o quanto nós somos limitados. Minha mãe tinha viajado, e eu me pus diante de uma imagem de Nossa Senhora Aparecida a pedir. E ali eu me dei conta de que não tinha fé, de que não conhecia Deus. E ter me dado conta de que eu não tinha fé, de que eu não conhecia Deus me marcou muito. Depois, uma série de perguntas e de encontros me fizeram encontrar a Igreja e a fé. Lembro-me que diante da imagem de Aparecida, eu pedi, sem fé, a vida da minha avó, mas Nossa Senhora me deu mais: me deu a fé, e deu a mim a vida eterna, a vida que minha avó já tinha, por ter fé. E este ano fui novamente agradecer. Pedi para conhecer e amar cada vez mais a Senhora Aparecida, a Rainha do Universo e dos corações. Escrevo essas coisas, confiando no que ela diz de si mesma, que aqueles que a tornam conhecida terão a vida eterna (Eclo 24,31). São muitas as coisas que eu teria a contar, tão grande é a preferência e a bondade da Rainha do Universo por mim. O dia de hoje me enche de gratidão.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Em tempos de política

Uma das coisas mais impressionantes que já li sobre sobre Política foi no Antigo Testamento, no Primeiro Livro de Samuel. Após a libertação da escravidão no Egito e do estabelecimento em Canaã, o povo hebreu, após a morte de seus dois grandes líderes, Moisés e Josué, era governado de forma auto-gestionária, pelos chamados juízes (os juízes foram os grandes responsáveis pela fixação do povo hebreu em Canaã, e se tornaram personagens célebres como Gideão, que derrotou os madianitas e Sansão, que matou três mil filisteus).

Apesar dos juízes serem grandes líderes, sua liderança era carismática e baseava-se na inspiração, no exemplo. Não existia a ideia de uma instituição que unificasse as doze tribos e todos os clãs que formavam o povo hebreu. O povo era governado pela Lei que recebeu de Moisés. Esta Lei estava codificada no que hoje chamamos de Pentateuco - os cinco grandes livros da Lei, especialmente no Êxodo, no Levítico e no Deuteronômio - , e por meio desta Lei, os clãs se auto-governavam de forma autônoma, sendo esse auto-governo mediado por grandes sábios, que faziam a interpretação da Lei e a aplicação aos casos concretos, os juízes.

O último grande juiz de Israel foi Samuel. Uma das coisas mais impressionantes em todo o Antigo Testamento é ver o povo pedir a Samuel que lhes sagrasse um rei usando como argumento o fato de que "todos os povos vizinhos tinham um rei", e que por conta disso, eles também queriam ter um rei. O que impressiona é que este povo fugiu justamente da instituição da realeza (a concentração do poder numa figura única), pois fugiram do Faraó do Egito. E além de tudo mais, a instituição dos reis era, na maior parte dos casos, a fonte e a origem da opressão (expressa pelo chamado modo de produção asiático, no qual todos os súditos eram virtualmente escravos do soberano, que em muitos casos, apresentava-se a si próprio como a encarnação do divino, do Mistério, como o próprio Faraó, que se auto-intitulava "Deus"). O povo de Israel era contrário a tudo isso, era uma subversão absoluta, já que o Mistério era concebido, pelos hebreus como o Santo, ou seja, o Totalmente Outro, e que não se identificava de forma alguma com algum poder constituído pelos homens.

O trecho abaixo mostra como surge no povo de Israel o desejo de um rei, o desejo de uma unidade política. Segue o trecho, o mais pode ser lido no Primeiro Livro de Samuel.

"E sucedeu que, tendo Samuel envelhecido, constituiu a seus filhos por juízes sobre Israel.
E o nome do seu filho primogênito era Joel, e o nome do seu segundo, Abia; e foram juízes em Berseba.
Porém seus filhos não andaram pelos caminhos dele, antes se inclinaram à avareza, e aceitaram suborno, e perverteram o direito.
Então todos os anciãos de Israel se congregaram, e vieram a Samuel, a Ramá,
E disseram-lhe: Eis que já estás velho, e teus filhos não andam pelos teus caminhos; constitui-nos, pois, agora um rei sobre nós, para que ele nos julgue, como o têm todas as nações."

(1 Samuel 8:1-5)

Dessa forma, atendendo aos pedidos dos anciãos, dos líderes dos clãs do povo, Saul foi constituído por Samuel o primeiro rei de Israel e foi o responsável pela consolidação de sua unificação política, preparando o caminho para os grandes reinados de Davi e de Salomão (que construiu o Templo, que tornou-se símbolo da nação, mais tarde). A coisa que impressiona é observar o povo abrindo mão de sua autogestão, de sua liberdade, de sua autonomia, em virtude da unidade política, por meio da força e da institucionalização, usando como justificativa o que hoje chamaríamos de benchmarking (a imitação das melhores práticas), dado que a maior parte dos povos se organizava politicamente dessa forma mais unificada (como as clássicas cidades-Estado). Porém, a História mostrou que esse modelo político não funcionou muito em Israel. O reinado foi uma instituição trágica para o povo hebreu. Em algumas dezenas de anos, a nação se dividiu em duas, sendo que uma delas foi completamente destruída, e a outra se viu escravizada novamente em Babilônia, vítima do mesmo modelo político operado no Egito, o modo de produção asiático. Israel só readquiriu soberania sobre sua terra em 1948, há 64 anos, após o holocausto prepetrado por Hitler.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

A crise da Europa, crise do humano

O que é a Europa?

A Europa é fruto de um sonho humano, o desejo da universalidade. Em nome desse desejo, entremeado a todas as paixões humanas, e a todas as sedes de poder e de domínio, se construiu a helenização do mundo, do ponto de vista cultural, e a formação do Império Romano, do ponto de vista político. O próprio imperador, quando conquistava uma terra nova, lá proclamava o "evangelho" (sim, "evangelho" é uma palavra grega que significa "boa notícia"). A "boa notícia" trazida pelo imperador era a paz, a "pax romana". Não é à toa que o imperador romano se proclamava o "salvador de todo o universo". Roma conseguiu unificar uma inumerável miríade de povos, culturas, raças e línguas, trazendo realmente a paz, porque todos os povos estavam subjugados e a unidade estava garantida pelo domínio do imperador. Todo esse império era mantido e regido pelo Direito. O encontro com o cristianismo veio tornar pleno esse desejo de universalidade, pois a razão grega aliada ao direito e à política romana vieram a realizar-se plenamente naquilo que ficou conhecido como "o cristianismo", ou "a Igreja". De fato, a Igreja levou a cabo assimilação da razão grega e do direito romano, e devemos confessar a nós mesmos, que toda a nossa filosofia e ciência, e também o nosso direito descendem diretamente do pensamento grego e da política romana. Como disse o papa Bento XVI, na Alemanha, em 2011, "desse tríplice encontro nasceu a Europa".

A Europa é um patrimônio da humanidade. Ela se aproxima do ideal de universalidade que desde tempos imemoriais habita a humanidade, desde que ela foi dispersa na Torre de Babel. As Nações Unidas, e toda a parafernália internacional, não passam de um arremedo daquilo que, aos longo dos tempos foi naturalmente se cristalizando, até formar a Europa.

Hoje, a Europa renega a si mesma. Tem uma crise de identidade. Não sabe mais quem é. Renega a razão, afirmando o relativismo e o consequente ceticismo, para o qual é impossível chegar a uma certeza. Se não é possível uma certeza sobre a vida, vence o niilismo, "a dança sobre o vazio", como já profetizava Nietzsche, cem anos atrás. A Europa renega o Direito, e hoje vê-se isso claramente no triunfo da ideologia de gênero, que nega a natureza, e consequentemente o Direito Natural, e também na ascensão dos chamados "novos direitos" (ou "direitos de quarta geração"), como o direito irrestrito ao aborto, à eutanásia, aos "same sex marriage", nos quais os desejos erigem-se em critérios normativos do ordenamento social, onde a "lógica" passa a ser o relativismo e a detenção do poder no momento. Mais do que tudo, a Europa renega o encontro com o cristianismo. Renega as raízes cristãs. Tem vergonha do cristianismo. Para a maioria dos europeus, vive-se completamente "sem Jesus depois de Jesus". O ateísmo domina, e a vida torna-se cada vez mais absurda e cínica, completamente sem sentido. O mundo torna-se, como também profetizou Shakespeare "uma fábula contada por um idiota num acesso de raiva".

A atual crise econômica é uma crise do humano, como já antecipava Bento XVI, uma crise antropológica. É o europeu que está em crise. Mais ainda, não é uma mera crise europeia, é uma crise ocidental, já bem apresentada na trilogia O Declínio do Império Americano, As Invasões Bárbaras e A Idade das Trevas (no Brasil,  "L'âge des Tenèbres" pessimamente traduzido como A Era da Inocência). Hoje fala-se em "crise de confiança". De fato, a Europa se firmou como uma sociedade da confiança. O outro homem não é o lobo do homem contra o qual é necessário erigir o Estado para nos defender, mas o outro é um ser dotado de razão, como descobriram os gregos, que vive numa sociedade política administrada segundo o Direito, como descobriram os romanos. E mais ainda: o outro é o próximo. O próximo debaixo do qual se esconde uma positividade, ainda que muitas vezes mascarada por uma série de circunstâncias que podem degradá-lo e desfigurá-lo. Com este próximo pode-se viver, fazer acordos (política), e tecer contratos (economia), que supõe-se deverão ser respeitados. 

Uma crise de confiança é uma crise de confiança em quem? Antes de mais nada no homem, mas além disso, configura-se uma crise de confiança na realidade, que se expressa de forma concreta como uma desconfiança e medo generalizado e difuso,  na economia e na política, e sobretudo nos relacionamentos. Não confiam-se mais nos políticos. Nada se espera mais do mercado. Os relacionamentos são cada vez mais líquidos. A salvação, quando ainda é esperada, projeta-se em ideologias, que na verdade não passam de miasmas coagulados, fantasmas sem nenhum fundamento na realidade. Exatamente como o dinheiro fictício que circula nas bolsas de valores do mundo, que não têm nenhum lastro no mundo real, dinheiro fundamentado em dívidas, podre na verdade. Uma vida assim é uma "vida a crédito", como dizia o filósofo polonês Zygmunt Bauman, onde os desejos são mercantilizados e a ideologia da dívida é a esperança de que certos bens materiais possam preencher o vazio infinito dos nossos desejos.

Tudo isso revela, na verdade, uma falência e um grande não. A realidade desmente todos os ideólogos que quiseram enjaulá-la em suas gaiolas de ferro, em seus bunkers irrespiráveis. Para onde olhar? Estamos no fio da navalha entre o niilismo mais abjeto e a verdadeira esperança. Um fato é um acontecimento irredutível, é um ponto de não-retorno, marca-nos de forma a que não mais possamos voltar ao que era antes, é uma verdadeira reação química, uma alquimia, de tal forma que os elementos se transmutaram de tal forma que não podem mais voltar a ser como eram antes. O sonho idílico do retorno à Antiguidade não marcada pelas "trevas" da Idade Média é impossível. Fomos marcados de tal forma pelo acontecimento cristão que se colou de tal forma às nossas entranhas, que por mais que nos esforcemos para viver "sem Jesus depois de Jesus", no fundo, no fundo, não o conseguiremos, porque estamos marcados. E essa é a nossa esperança. Um fato irredutível. A razão descoberta pelos gregos, o direito romano e o acontecimento cristão. Essa tríade marcou a humanidade, e marca ainda hoje. Voltar novamente o olhar, converter-nos para o que aconteceu e acontece ainda hoje, é a única esperança para a Europa, essa expressão maravilhosa do quão grande é o coração do homem.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O empenho e o penhor

Uma das lembranças mais dolorosas que tenho na vida é do tempo que eu tinha de acordar para ir às aulas de Estatística na UFBA, que começavam às sete horas, e que eu, na maior parte das vezes, chegava às nove. Lembro-me como hoje da minha total ausência de forças para levantar e ir, da minha total falta de motivação. Isso já faz muito tempo, oito anos para ser mais exato, mas essa situação sempre me suscitou a pergunta acerca da palavra "empenho": para que se empenhar? 

Dei-me conta, há alguns minutos, fazendo palavras-cruzadas, que a palavra "empenho" vem da mesma raiz da palavra "penhor". O penhor é uma forma tradicional de empréstimo no qual se dá um bem como garantia, geralmente avaliado em ouro, para ser resgatado futuramente, mediante a devolução com juros do dinheiro emprestado. E eu fiquei muito impressionado me dando conta exatamente: só é possível se empenhar em algo se você reconhece uma promessa dentro. O empenho verdadeiro, para não ser um ativismo histérico ou o disfarce de uma hiperatividade neurótica, só pode nascer da percepção da promessa, do penhor que é a realidade. O trabalho sempre nasce da esperança.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

A novilíngua orwelliana e a perseguição a Bento XVI

Uma das coisas mais descaradas, mais estapafúrdias, mais criminosas e delinquentes que eu vi nos últimos meses, mais difamatórias, mentirosas, mesquinhas e um total serviço à desinformação, ao emburrecimento, à ideologização e à inutilidade foi a notícia, amplamente divulgada na mídia e viralizada quase ao infinito pelo Twitter, foi a imensa polemização da suposta declaração do papa de que o casamento gay seria uma "ameaça ao futuro da humanidade". Eu fiquei muito impressionado com a suposta frase, e especialmente em relação à desinformação e ao ódio desenfreado contra o Papa e contra a Igreja. No fundo, este é um ódio do poder contra quem, em plena pós-modernidade relativista, ousa chamar a nossa atenção não para si próprio (pois sabe muito bem que vai ser odiado sem razão por afirmar certas coisas), mas para o nosso próprio coração, que é sede inexorável de verdade e justiça, de beleza e liberdade. Contra um mundo que se delicia no pastiche e no repeteco pós-moderno do velho travestido de novo, Bento XVI ousa chamar a atenção para aquilo que não envelhece nunca. E paga o preço por isso, marginalizado, em pleno mal-estar da pós-modernidade.

Pois bem: indignado com a situação, e depois que eu li as cínicas declarações, inclusive de muitas "celebridades" no Twitter, e crendo, como nos ensina o Estado de Direito, que todos nós somos inocentes até que se prove o contrário (e não o contrário como nos ensinam os mestres da suspeita, Marx, Nietzsche e Freud, de que todos são culpados até que se prove o contrário, e que a realidade não é o que aparenta ser, inaugurando a cultura da suspeita e do medo em relação ao real e à vida), fui então à fonte: o que, afinal, disse o Papa? (pois eu pensei: o Papa não é tão leviano a ponto de dizer que o casamento gay ameaça o futuro da humanidade, pelo simples fato da maioria esmagadora da população ser heterossexual). Lido o texto (muito bom, por sinal), eis que surge a declaração do Papa: "as políticas que atentam contra a família ameaçam a dignidade humana e o próprio futuro da humanidade."

Ei-la a frase acima, foi exatamente o que o Papa disse. Depois de estudar análise do discurso, Michel Foucault, o não-dito e outras coisas mais (como fiz para a minha dissertação de mestrado), posso dizer que é uma interpolação gigantesca dizer que o Papa falou que "o casamento gay é uma ameaça à humanidade". Todo esse fuzuê com uma declaração que simplesmente inexistiu (porque cada um que teve ou tem uma família, para negar a afirmação do Papa, tem de ir contra a própria experiência, ao negar a importância fundamental do próprio pai e da própria mãe para o desenvolvimento de suas próprias vidas) me lembra o que George Orwell já profetizou há algumas décadas sobre a "novilíngua":  o poder que dominaria a sociedade começaria inventando uma nova língua, uma nova linguagem, mudando a forma das pessoas falarem e pensarem, impedindo as pessoas de pensarem e agirem por si próprias. O poder, invisível e difuso nestes tempos pós-modernos, líquido, mas onipresente, é como um Panóptico que a todos controla, do alto da sua Torre de Vigia. Uma meia-dúzia de agências de notícias, financiadas pelos grandes trustes que controlam as comunicações no mundo inteiro "criam" e divulgam notícias, espalhando-as pelo mundo afora. Para muitos, não existe a "verdade". A "verdade" é algo inatingível, o que existe é a minha versão dos fatos, a minha opinião, a minha posição. Em relação a Bahia e Vitória, Corínthians e São Paulo, até que dá um pensamento assim, mas isso não coaduna quando se trata da estrutura da realidade e da linguagem do ser. A novilíngua parte do princípio de que não existe verdade, só discurso. E é muito interessante que Michel Foucault, filósofo que estudou o poder nos anos 60 intercambiava as palavras "discurso" e "poder". "Quem controla o discurso controla o poder", diz Foucault.

Hoje, a guerra é travada pelo controle do discurso, dentro do discurso. O discurso é o palco da guerra no século XXI, e por isso o hipertexto é uma grande trincheira de batalha.  "Verdade" é a coisa que menos importa neste momento de mal-estar. Mas a verdade é como uma rocha. A sua característica é a sua durabilidade; ela permanece apesar de todas as intempéries que a atingem. Qualquer um para negar Bento XVI tem de negar a própria experiência que fez na vida, de ser gerado por uma mulher, e criado por um pai e uma mãe. Isto é um fato,  porque a verdade existe e se faz transparente na experiência, não sei a razão para tanto ódio disseminado. O Papa não atacou os gays, somente defendeu a família, defendeu a si mesmo e a cada um de nós. Mas quem prega o ódio ao Papa não ama nem os gays, nem as famílias, nem a si mesmos, não ama ninguém, só ama o poder e quer a todo custo controlar as mentes e os corações e estabelecer sob os próprios pés um rebanho de criados dóceis, que trocaram a sua liberdade pelo pão e circo da pós-modernidade.