O que é a Europa?
A Europa é fruto de um sonho humano, o desejo da universalidade. Em nome desse desejo, entremeado a todas as paixões humanas, e a todas as sedes de poder e de domínio, se construiu a helenização do mundo, do ponto de vista cultural, e a formação do Império Romano, do ponto de vista político. O próprio imperador, quando conquistava uma terra nova, lá proclamava o "evangelho" (sim, "evangelho" é uma palavra grega que significa "boa notícia"). A "boa notícia" trazida pelo imperador era a paz, a "pax romana". Não é à toa que o imperador romano se proclamava o "salvador de todo o universo". Roma conseguiu unificar uma inumerável miríade de povos, culturas, raças e línguas, trazendo realmente a paz, porque todos os povos estavam subjugados e a unidade estava garantida pelo domínio do imperador. Todo esse império era mantido e regido pelo Direito. O encontro com o cristianismo veio tornar pleno esse desejo de universalidade, pois a razão grega aliada ao direito e à política romana vieram a realizar-se plenamente naquilo que ficou conhecido como "o cristianismo", ou "a Igreja". De fato, a Igreja levou a cabo assimilação da razão grega e do direito romano, e devemos confessar a nós mesmos, que toda a nossa filosofia e ciência, e também o nosso direito descendem diretamente do pensamento grego e da política romana. Como disse o papa Bento XVI, na Alemanha, em 2011, "desse tríplice encontro nasceu a Europa".
A Europa é um patrimônio da humanidade. Ela se aproxima do ideal de universalidade que desde tempos imemoriais habita a humanidade, desde que ela foi dispersa na Torre de Babel. As Nações Unidas, e toda a parafernália internacional, não passam de um arremedo daquilo que, aos longo dos tempos foi naturalmente se cristalizando, até formar a Europa.
Hoje, a Europa renega a si mesma. Tem uma crise de identidade. Não sabe mais quem é. Renega a razão, afirmando o relativismo e o consequente ceticismo, para o qual é impossível chegar a uma certeza. Se não é possível uma certeza sobre a vida, vence o niilismo, "a dança sobre o vazio", como já profetizava Nietzsche, cem anos atrás. A Europa renega o Direito, e hoje vê-se isso claramente no triunfo da ideologia de gênero, que nega a natureza, e consequentemente o Direito Natural, e também na ascensão dos chamados "novos direitos" (ou "direitos de quarta geração"), como o direito irrestrito ao aborto, à eutanásia, aos "same sex marriage", nos quais os desejos erigem-se em critérios normativos do ordenamento social, onde a "lógica" passa a ser o relativismo e a detenção do poder no momento. Mais do que tudo, a Europa renega o encontro com o cristianismo. Renega as raízes cristãs. Tem vergonha do cristianismo. Para a maioria dos europeus, vive-se completamente "sem Jesus depois de Jesus". O ateísmo domina, e a vida torna-se cada vez mais absurda e cínica, completamente sem sentido. O mundo torna-se, como também profetizou Shakespeare "uma fábula contada por um idiota num acesso de raiva".
A atual crise econômica é uma crise do humano, como já antecipava Bento XVI, uma crise antropológica. É o europeu que está em crise. Mais ainda, não é uma mera crise europeia, é uma crise ocidental, já bem apresentada na trilogia O Declínio do Império Americano, As Invasões Bárbaras e A Idade das Trevas (no Brasil, "L'âge des Tenèbres" pessimamente traduzido como A Era da Inocência). Hoje fala-se em "crise de confiança". De fato, a Europa se firmou como uma sociedade da confiança. O outro homem não é o lobo do homem contra o qual é necessário erigir o Estado para nos defender, mas o outro é um ser dotado de razão, como descobriram os gregos, que vive numa sociedade política administrada segundo o Direito, como descobriram os romanos. E mais ainda: o outro é o próximo. O próximo debaixo do qual se esconde uma positividade, ainda que muitas vezes mascarada por uma série de circunstâncias que podem degradá-lo e desfigurá-lo. Com este próximo pode-se viver, fazer acordos (política), e tecer contratos (economia), que supõe-se deverão ser respeitados.
Uma crise de confiança é uma crise de confiança em quem? Antes de mais nada no homem, mas além disso, configura-se uma crise de confiança na realidade, que se expressa de forma concreta como uma desconfiança e medo generalizado e difuso, na economia e na política, e sobretudo nos relacionamentos. Não confiam-se mais nos políticos. Nada se espera mais do mercado. Os relacionamentos são cada vez mais líquidos. A salvação, quando ainda é esperada, projeta-se em ideologias, que na verdade não passam de miasmas coagulados, fantasmas sem nenhum fundamento na realidade. Exatamente como o dinheiro fictício que circula nas bolsas de valores do mundo, que não têm nenhum lastro no mundo real, dinheiro fundamentado em dívidas, podre na verdade. Uma vida assim é uma "vida a crédito", como dizia o filósofo polonês Zygmunt Bauman, onde os desejos são mercantilizados e a ideologia da dívida é a esperança de que certos bens materiais possam preencher o vazio infinito dos nossos desejos.
Tudo isso revela, na verdade, uma falência e um grande não. A realidade desmente todos os ideólogos que quiseram enjaulá-la em suas gaiolas de ferro, em seus bunkers irrespiráveis. Para onde olhar? Estamos no fio da navalha entre o niilismo mais abjeto e a verdadeira esperança. Um fato é um acontecimento irredutível, é um ponto de não-retorno, marca-nos de forma a que não mais possamos voltar ao que era antes, é uma verdadeira reação química, uma alquimia, de tal forma que os elementos se transmutaram de tal forma que não podem mais voltar a ser como eram antes. O sonho idílico do retorno à Antiguidade não marcada pelas "trevas" da Idade Média é impossível. Fomos marcados de tal forma pelo acontecimento cristão que se colou de tal forma às nossas entranhas, que por mais que nos esforcemos para viver "sem Jesus depois de Jesus", no fundo, no fundo, não o conseguiremos, porque estamos marcados. E essa é a nossa esperança. Um fato irredutível. A razão descoberta pelos gregos, o direito romano e o acontecimento cristão. Essa tríade marcou a humanidade, e marca ainda hoje. Voltar novamente o olhar, converter-nos para o que aconteceu e acontece ainda hoje, é a única esperança para a Europa, essa expressão maravilhosa do quão grande é o coração do homem.
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