terça-feira, 27 de maio de 2025

A OPRESSÃO ESPIRITUAL E A BELEZA DA FÉ CRISTÃ


O clima espiritual do Império Romano no momento da disseminação do cristianismo era, para o homem e a mulher comuns, um ambiente densamente carregado de medo, fatalismo, superstição e ausência de sentido último. A opressão espiritual romana não se resumia à imposição do culto imperial ou à hierarquia rígida das classes sociais; ela era uma experiência existencial e interior, vivida no cotidiano, nas estruturas mentais, nas crenças religiosas, nos cultos oficiais e privados, na filosofia e até na arquitetura. A religião greco-romana era essencialmente ritualista, politeísta e cívica. Os deuses não eram entidades compassivas, mas potências a serem aplacadas, cultuadas e, sobretudo, temidas. Cada esfera da vida, nascimento, colheita, guerra, viagem, sexo, doença, tinha seu deus ou deusa, e todos esses exigiam sacrifícios e rituais. Havia centenas de divindades, espíritos, gênios, daimons, cada um com suas exigências. A relação com os deuses era de barganha, não de amor: “faço isso, para que tu me dês aquilo.” Os deuses eram caprichosos, muitas vezes cruéis, indiferentes ao sofrimento humano. 

Não havia esperança de salvação, redenção ou vida eterna com significado pessoal. A alma humana não era um valor absoluto; o corpo era descartável, e a vida após a morte era, na melhor das hipóteses, uma sombra no Hades. A população vivia sob constante terror espiritual. Se algo dava errado, uma colheita ruim, uma epidemia, uma morte súbita, era porque os deuses estavam irados. Então se ofereciam sacrifícios, às vezes humanos, para aplacá-los. O culto ao imperador, obrigatório em muitas regiões, misturava política e religião: negar que o imperador era divino era considerado traição. A astrologia, a magia, os oráculos, os amuletos e os cultos mistéricos proliferavam, pois as pessoas buscavam qualquer tipo de segurança diante de um universo que parecia hostil e arbitrário. A vida não era sagrada: o infanticídio era comum, os doentes eram descartados, os escravos eram brutalizados, e as mulheres, especialmente pobres, eram frequentemente abusadas e vendidas. Quando os primeiros cristãos começaram a anunciar a Boa Nova, suas palavras ressoaram como trovões em meio a um deserto de silêncio e opressão. 

O anúncio de que Deus é amor, de que Deus se fez homem, de que os pobres são bem-aventurados, de que existe vida eterna, e ela é plena e luminosa, era absolutamente revolucionário. Pela primeira vez, uma mensagem religiosa dizia que Deus se importava com os pequenos, os doentes, os impuros e os marginalizados. E mais: esse Deus morria por amor. Não exigia sacrifícios humanos, Ele próprio se fazia sacrifício. Não era um deus distante e cruel, mas um Deus-Pai, compassivo, que acolhia a todos. O sofrimento ganhava sentido; a vida ganhava valor intrínseco. Cada pessoa era criada à imagem de Deus. A alma era imortal, e a ressurreição era uma promessa real. Os ricos comiam à mesa com os pobres, os escravos eram chamados de “irmãos”, as mulheres eram profetisas e líderes de comunidades, os órfãos eram acolhidos, os moribundos eram cuidados mesmo durante as epidemias. Era um escândalo e, ao mesmo tempo, um alívio psíquico. Uma revolução espiritual que dava sentido à vida e dignidade à morte. A decisão de morrer por Cristo não era fruto de fanatismo, mas de uma convicção existencial profunda: “não voltarei para a escuridão.” 

O clima espiritual da contemporaneidade, especialmente nas sociedades ocidentais que historicamente foram moldadas pelo cristianismo está atravessando uma transformação radical, profunda e ambivalente: o modo como os indivíduos percebem o sentido da vida, a morte, o sofrimento, o amor, a justiça, o sagrado. Durante séculos, o cristianismo não foi apenas uma religião entre outras no Ocidente: foi a matriz simbólica, moral, espiritual e filosófica que estruturou o imaginário coletivo. As grandes questões da existência eram filtradas através da narrativa cristã: criação, queda, redenção, graça, pecado, salvação, comunhão, transcendência. No entanto, nas últimas décadas, este horizonte cristão tem sofrido um duplo processo: o declínio institucional das Igrejas e o esvaziamento simbólico dos seus conteúdos espirituais. Esperava-se uma substituição racionalista ou cientificista e isso não se cumpriu. O que emergiu foi um vazio espiritual, um colapso da metafísica, um abandono das grandes narrativas.  

A opressão espiritual do mundo contemporâneo não vem de uma autoridade religiosa totalitária nem de um Estado teocrático. Ela nasce da própria liberdade sem direção. O sujeito contemporâneo tem autonomia para “criar sua própria espiritualidade”, mas frequentemente se vê perdido entre milhares de opções. Outro aspecto é a solidão. As comunidades religiosas tradicionais não eram apenas lugares de culto, mas espaços de acolhimento, pertença e solidariedade. Com seu enfraquecimento, muitos vivem hoje uma espiritualidade atomizada, sem comunidade, sem partilha, sem vínculo. A alma humana, naturalmente orientada para o encontro, definha nesse isolamento espiritual. Além disso, o culto contemporâneo da performance, da produtividade, da estética, da autoimagem, gerou uma nova moralidade secular, baseada em méritos subjetivos: estar bem, ser feliz, ter propósito, ser grato, cuidar da saúde, ter equilíbrio. Os que não conseguem se adaptar ao modelo idealizado de bem-estar, os depressivos, os ansiosos, os fracassados, os doentes, os pobres, são vistos como espiritualmente ineficazes. O sofrimento perde o valor redentor que tinha no cristianismo e se torna um defeito a ser escondido. Isso gera uma espiritualidade de desempenho: devemos estar “bem” o tempo todo, e, se não estamos, algo está profundamente errado conosco. Por fim, há o desamparo diante da morte. Sem uma narrativa escatológica sólida, muitos se aproximam da morte como um abismo sem significado. 

Contudo, esse cenário não é marcado apenas por ausência. Há também novas buscas, novos experimentos. O crescimento de espiritualidades alternativas, desde o esoterismo moderno, até o neopaganismo, o mindfulness, o yoga, o psicodelismo espiritual, os cultos à natureza, a astrologia digital, mostra que o espírito humano continua sedento. Mas essas buscas são, em sua maioria, desinstitucionalizadas, personalizadas e individualistas. A espiritualidade torna-se um “acessório identitário”, como um estilo de vida, mais do que uma conversão ontológica.  O espírito humano continua, como sempre, faminto de sentido, de amor, de beleza, de eternidade. O cristianismo, com sua oferta de uma verdade pessoal e relacional, o encontro com Cristo, continua sendo uma proposta única e inigualável. Mas será necessário reapresentá-lo não como um sistema moral ou uma estrutura cultural, mas como a resposta viva à sede mais profunda do coração humano. E isso exige, antes de tudo, que os cristãos redescubram, para si mesmos, a beleza de sua própria fé.

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