Vivemos em uma era em que a felicidade se tornou um imperativo moral. As redes sociais, repletas de filtros não apenas visuais, mas emocionais, impõem a todos a obrigação de exibir uma vida plena, produtiva e permanentemente feliz. A tristeza, a angústia, a dúvida e o sofrimento, experiências humanas universais, são cada vez mais relegadas ao campo do indesejável, do fracasso, do patológico. Essa exigência constante de positividade dá origem ao fenômeno conhecido como positividade tóxica: a imposição de uma atitude excessivamente otimista, mesmo diante de situações claramente difíceis ou traumáticas, resultando na negação ou invalidação da dor, do luto e da complexidade emocional da existência.
Segundo Barbara Ehrenreich, autora do seminal Sorria ou morra: como o pensamento positivo enganou a América e o mundo (2009), a cultura do pensamento positivo pode ser não apenas enganosa, mas perigosa. Após enfrentar um câncer de mama, Ehrenreich foi confrontada com uma avalanche de mensagens que exigiam gratidão, alegria e otimismo. “O câncer é um presente”, diziam. “Pense positivo e ele desaparecerá.” Para Ehrenreich, esse tipo de pensamento suprime o real, silencia a dor e transforma o sofrimento em uma falha moral. “A tirania do pensamento positivo está enraizada em uma cultura que prefere a negação ao confronto, o brilho ao abismo, a ilusão à lucidez”, escreve. A positividade tóxica se apresenta com frases bem-intencionadas, mas cruéis, como “poderia ser pior”, “pelo menos você está vivo”, “tudo acontece por uma razão”, ou “você precisa ser mais grato”. Essas expressões não acolhem a dor, mas a deslegitimam. A escritora Brené Brown observa: “A empatia nunca começa com ‘pelo menos’” (A coragem de ser imperfeito, 2013). A verdadeira empatia exige espaço para que o outro sofra, chore, grite, sem que sua dor seja corrigida ou diminuída por platitudes.
Além disso, o psicólogo Carl Jung já advertia que “não se torna iluminado por imaginar figuras de luz, mas sim por tornar a escuridão consciente”. Em outras palavras, fugir da dor, da sombra e da negatividade não nos aproxima da cura, mas nos aliena. A positividade tóxica nega a sombra, conceito essencial na psicologia analítica, empurrando para o inconsciente tudo aquilo que não se encaixa na imagem idealizada de perfeição emocional. As redes sociais amplificam esse problema. Aplicativos como Instagram, TikTok e Facebook criam vitrines cuidadosamente montadas onde a vida dos outros parece sempre melhor. A socióloga Eva Illouz, em O Amor nos Tempos do Capitalismo (2011), argumenta que a mídia contemporânea molda nossos afetos e nos leva a consumir ideais emocionais. A felicidade, portanto, torna-se um produto, uma performance. Não basta viver bem, é preciso parecer viver bem e com filtros. Contudo, a saúde mental não floresce sob a negação da dor, mas sob sua integração. E é aqui que o gótico e o terror emergem como poderosas ferramentas contra a ditadura da positividade.
O gótico como resistência à positividade tóxica
A literatura gótica nasceu do confronto com os horrores da modernidade. Obras como O Castelo de Otranto (1764), de Horace Walpole, e Frankenstein (1818), de Mary Shelley, não apenas assustam: elas denunciam o que é reprimido pela Racionalismo e pelo Iluminismo. O gótico é a literatura dos porões emocionais, das ruínas psíquicas, dos traumas transgeracionais. Ele nos lembra que somos feitos de contradições, de desejos inconfessáveis, de medos indomáveis. Como escreveu H.P. Lovecraft, “a emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo, e o tipo mais antigo e mais forte de medo é o medo do desconhecido”. Ao contrário da positividade tóxica, o terror não exige que sejamos felizes. Ele não quer que sejamos belos, produtivos ou bem-sucedidos. O terror nos convida a reconhecer nossos abismos. Stephen King, mestre do horror contemporâneo, declarou certa vez: “Nós inventamos horrores para nos ajudar a lidar com os reais.” Essa afirmação aponta para uma verdade fundamental: o terror é uma forma de catarse. Ele nos permite encarar simbolicamente a morte, a loucura, a dor, o luto, a perda, todos esses elementos que a positividade tóxica tenta esconder.
A literatura de Edgar Allan Poe, por exemplo, é um mergulho poético na depressão, na culpa e no colapso da razão. Em O Coração Denunciador, o narrador é devorado pelo peso de sua consciência, enquanto em O Corvo, a repetição hipnótica do lamento “nunca mais” transforma o poema em um rito fúnebre da alma. Poe não oferece consolo, ele oferece espelho. Autores contemporâneos, como Shirley Jackson (A Assombração da Casa da Colina) e Mark Z. Danielewski (Casa de Folhas), continuam essa tradição ao explorar como o terror psicológico e o ambiente gótico refletem estados internos fragmentados e experiências traumáticas.
A estética gótica como prática terapêutica
A arte gótica e o terror permitem uma reintegração da sombra, nos termos de Jung. Ao nomear os monstros, ao contar histórias de casas assombradas, pactos demoníacos e insanidade, abrimos um espaço para reconhecer que a dor existe e que ela faz parte de nós. O monstro é sempre uma metáfora: da alteridade, da exclusão, da angústia reprimida. Em O Morro dos Ventos Uivantes, Emily Brontë retrata o amor como uma força destrutiva, indomável, que transcende a moralidade convencional. Em Rebecca, de Daphne du Maurier, a presença de uma mulher morta domina todos os cantos de Manderley, revelando que o passado e suas dores nunca é realmente enterrado. Essa estética sombria, longe de ser danosa, é libertadora. Ao permitir que exploremos a dor em um ambiente seguro, seja nas páginas de um livro ou na tela de um filme, o gótico atua como válvula psíquica de escape, como o sonhar noturno que organiza os traumas do dia. Ele acolhe, onde a positividade afasta. Ele dá nome ao inominável.
Superar a positividade tóxica e resistir à tirania do desempenho
A superação da positividade tóxica exige, antes de tudo, uma aceitação radical da realidade emocional. Isso inclui a disposição de sentir tristeza, raiva, luto, desesperança, solidão. Não se trata de permanecer nessas emoções indefinidamente, mas de não negá-las. Como diz o filósofo Alain de Botton: “A tristeza não é um defeito de caráter. É uma resposta legítima à complexidade da vida.” A psicoterapia, a oração, o cultivo de amizades autênticas e a leitura de obras que acolhem a angústia podem ser caminhos. Nietzsche escreveu: “É preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela dançante.” Talvez seja isso que o gótico nos ensina: não precisamos sufocar o caos com sorrisos postiços. Precisamos reconhecê-lo, dançar com ele, aprender sua linguagem. A positividade tóxica é uma máscara que asfixia. O gótico, com toda a sua escuridão simbólica, oferece libertação. Em vez de fugir da dor, ele a transforma em arte. Em vez de negar o luto, ele o ritualiza. Em vez de impor felicidade, ele nos convida à coragem de existir. Num mundo onde é proibido sofrer, o gótico nos devolve o direito de ser plenamente humanos, frágeis e contraditórios.
Vivemos em uma era em que o cansaço se tornou estrutural. A ansiedade, a exaustão, o esgotamento e a depressão são sintomas de uma patologia mais profunda: a compulsão por desempenho. Em A Sociedade do Cansaço, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han denuncia que não vivemos mais sob o modelo disciplinar da repressão, mas sob a lógica neoliberal da auto-exploração. O sujeito contemporâneo não é mais o “sujeito da obediência”, mas o “sujeito do desempenho”: “o homem que se acredita livre, mas que, na verdade, explora a si mesmo sob a ilusão de autonomia”. Neste novo paradigma, a liberdade se converte em obrigação. É preciso estar sempre ativo, produtivo, otimizado. A positividade torna-se compulsória. A vida vira um projeto e o corpo, uma máquina. Emoções são administradas como planilhas e o fracasso é interpretado como falha moral. É nesse contexto que o gótico e o terror, em suas manifestações literárias, cinematográficas e estéticas, aparecem como formas de resistência simbólica. Eles expõem, denunciam, ironizam e desconstroem a lógica da performance, oferecendo alternativas estéticas e afetivas que se recusam a cooperar com o regime da produtividade a qualquer custo.
A violência da autoexploração e a estética do colapso e da anti-eficiência
Byung-Chul Han afirma: “A violência da positividade não é mais viral, mas neuronal. O excesso de estímulo, de informação e de exigência de desempenho leva ao colapso interno.” (A Sociedade do Cansaço, 2010). Nesse novo tipo de violência, não há mais grilhões visíveis. O sujeito acredita que é livre porque é ele quem se cobra, se vigia, se aprimora, se vigia nas redes, se esgota. Trata-se de uma violência silenciosa, sem opressores explícitos. A produtividade é glorificada como um fim em si, e o descanso se torna quase uma culpa. A frase “você pode tudo” não é uma libertação, mas uma condenação disfarçada. O inferno agora é o espelho. O gótico e o terror, nesse sentido, são contra-imagens. Eles não celebram o desempenho: em obras góticas, as casas estão em ruínas, os corpos se decompõem, as mentes enlouquecem. O fracasso, longe de ser escondido, é o próprio tema. O gótico é uma estética do colapso, exatamente o que a sociedade de desempenho não quer ver. Na novela Bartleby, o escrivão, de Herman Melville, temos um personagem que, diante de uma lógica produtivista, responde apenas com uma frase: “Preferia não fazê-lo.” Esse gesto aparentemente simples é, na verdade, revolucionário. É uma recusa radical a participar da engrenagem.
O gótico valoriza o que a sociedade de desempenho despreza: o inútil, o improdutivo, o ocioso, o errante, o esquisito. O castelo gótico, com suas passagens secretas e seus fantasmas, não serve para nada. A arte gótica não é motivacional, não é eficaz, não é corporativa. Ela celebra o desvio, o grotesco, o falho. Como escreve Susan Sontag, “a beleza gótica é a beleza da ruína”. Filmes como Hereditário (2018), O Iluminado (1980), A Bruxa (2015) e Midsommar (2019) não trazem redenção, produtividade ou superação. Pelo contrário, eles mergulham na desintegração do sujeito. Nessas obras, o trauma não é resolvido, ele é exposto e a fragilidade humana não é curada, ela é contemplada.
Na sociedade de desempenho, o corpo deve ser perfeito, a carreira deve ser ascendente, as relações devem ser instagramáveis. O terror corporal (body horror), porém, desconstrói radicalmente essa imagem idealizada do corpo. Em obras de David Cronenberg como A Mosca (1986) ou Videodrome (1983), o corpo é mutante, fluido e grotesco. Não há controle. A carne escapa da vontade. Essa estética é uma afronta direta ao culto do corpo perfeito. Julia Kristeva, em Poderes do Horror (1982), chama isso de “abjeto”: aquilo que provoca repulsa por lembrar o humano de sua própria materialidade. O sangue, os fluidos, a morte, os monstros; tudo isso nos lembra que não somos máquinas. Somos carne, limite, dor. O gótico, ao enfatizar isso, liberta-nos da escravidão da autoimagem idealizada. Walter Benjamin, em Passagens, propõe o conceito de “fantasmagoria” para descrever as ilusões produzidas pela modernidade. As redes sociais são nossas novas fantasmagorias: o feed perfeito, a vida empreendedora, o corpo moldado, o sorriso eterno. Mas o gótico oferece uma fantasmagoria invertida. Ele não nos ilude com promessas, mas nos lembra do que foi soterrado: o passado, os traumas, os medos, os silêncios. O fantasma, no gótico, é sempre um retorno do reprimido. Ele volta para cobrar, para perturbar, para exigir escuta. O terror, portanto, não é uma fuga da realidade, é o seu aprofundamento simbólico.
O repouso estético como forma de desaceleração
Ler um romance gótico ou assistir a um filme de terror psicológico exige tempo, entrega, contemplação. O gótico exige silêncio, escuta interior, suspensão da lógica do “útil”. Ele nos ensina a permanecer com o desconforto, algo que a cultura do desempenho evita a qualquer custo. O gótico e o terror não oferecem soluções rápidas. O que eles querem é nos mostrar que não estamos sós em nossa dor, que não é preciso sorrir o tempo todo, e que, às vezes, sobreviver já é o bastante. Contra a sociedade do desempenho, o gótico propõe o fracasso como estética. Contra o cansaço, ele propõe o repouso da melancolia. Contra a violência da auto-exploração, ele propõe o cuidado com as próprias sombras. E contra o imperativo da positividade, ele ergue castelos escuros onde se pode, enfim, não fazer nada.
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