Ia falar sobre Ideologia, mas prefiro deixar aqui notas da aula do poeta Bruno Tolentino, realizada no Instituto Feminino da Bahia, no dia 28 de julho de 2004 sobre a Invenção da Ideologia. Segue abaixo:
"Um retrato nunca é a realidade. Havia uma tendência à deificação da ilusão. Toda pintura ocidental é ilusão; representa-se uma parte da realidade. A diferença entre a realidade viva e a representação do real é que a representação pode ser representada de novo. O real vivo precisa ser defendido contra toda representação; nada pode substitui-lo; o que é é preferível àquilo que poderia ou deveria ter sido (em nome de "um mundo melhor" matava-se o "mundo pior"). A Era Moderna, especialmente o século XVIII do Iluminismo (que não deixa de ser luz, embora ingênua) é a era da verificação do real. O Iluminismo passa a investigar a natureza do real. A positividade do real é inexorável, a defesa do real deve ser preferida; devemos preferir aquilo que é, que existe, é melhor que a fantasia. As tragédias que aconteceram são fundamentais para sermos aquilo que somos hoje; o mundo como idéia é uma distorção do mundo como fato. Se abrirmos mão disso, caímos no subjetivismo mais profundo. A invenção da ideologia não depende de nós (a invenção da liberdade não depende de nós). A doença do homem é pensar que tem os meios de saber o que é bom. Não posso possuir a sabedoria, posso amá-la. A realidade do século XVIII é procurar saber; é o dever de ser cético. Temos o dever do ceticismo, de verificar aquilo que nos foi dado. A má notícia do Iluminismo é que é que ele traz de volta a perspectiva, e o homem torna-se meramente histórico. Na mistagogia, não há essa espacialização do tempo, e ele pode se tornar a ante-sala da eternidade. Todos temos história, a História não é perfeita. O cortejo da modernidade passa pelo "arco do triunfo" da 1ª máquina de matar: a guilhotina (o século XVIII termina sendo o "século do terror"). É claro que o século XVIII foi a culminância de um processo de desmitificação da realidade; mas aí também se procede a invenção da ideologia (não se precisa tornar tudo cabível num arcabouço teórico).
O pai da Ideologia é Hegel em "A Fenomenologia do Espírito". Na Ideologia, não se tem mais o direito de se ter uma idéia; a Ideologia cria um sistema perfeito. A convenção não faz a coisa. A matemática é uma teoria do universo que compomos. No espírito de sistema, transformamos a representação da realidade na realidade. Na Ideologia, transformamos uma brincadeira em realidade. Com a entrada do espírito de sistema, desaparece o dever de ceticismo (que é a glória do Iluminismo). O auge da percepção do real chegou com Montaigne e Pascal, para ficarmos no óbvio. A coerção que o real traz às nossas idéias mais justas é preferível. É preciso segurar nossa tendência de "curar o real à tapa". Dar lições na realidade é uma das lições mais ridículas que a humanidade já se arrogou. A 1ª coisa que desaparece é o ouvir. A Ideologia é inventada para que a realidade seja melhorada de qualquer maneira. O desafio é suportar a companhia da realidade; o desafio da nossa inteligência é conviver, todos os dias, com o real (isso é o que nos separa do louco). Temos hoje também o complexo de Prometeu (o prometeísmo, que rouba o fogo dos deuses). A realidade não é a soma dos nossos esforços; é isso tudo mais aquilo que nos surpreende. Essa intenção de interferir na realidade para que as coisas progridam nos é pedida por Deus (no Antigo Testamento), mas convém não exagerar- a realidade corrige a si mesma. Parábola sufi: Moisés, Jesus e Maomé escolhem, diante de Deus, três taças. Moisés escolhe o mel, Jesus o vinho e Maomé o leite. Somente o vinho é humano, produzido pelo homem. O leite é aquele que sustenta (Moisés escolheu o mais doce); o Islã provê aquilo que é necessário ao homem, não corre o risco da abstração. Os judeus têm uma capacidade de discutir, de complicar. No cristianismo também existe isso por causa do chamado à perfeição. A capacidade de procurar, questionar-se no cristianismo é inexaurível. "A Sabedoria não é para ser atingida, e sim perseguida. Uma vez atingida a Sabedoria, ela é Loucura."
Nunca temos uma resposta suficiente para os "porquês" e "comos". A grande mudança nos séculos XV/XVI é a introdução da perspectiva (na época da queda de de Constantinopla em 1453).a loucura é trocar o "por que" das coisas pelo "como" delas. Machado e Dostoievski entram nessa lógica.No poema de Machado A Mosca Azul, o fundamental é isso: a troca do "por que" pelo "como". O homem começa a refletir-se na sua própria ilusão. Quando o homem não aceita o mistério diante de si, ele se confunde com sua ilusão; sujeito e objeto tornam-se um só, reina a subjetividade. "A Mosca Azul": este mau poema (forçosamente mau) de Machado é um dos maiores poema da estilística brasileira." Bruno Tolentino
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