domingo, 28 de janeiro de 2007

A Invenção da Ideologia

Ia falar sobre Ideologia, mas prefiro deixar aqui notas da aula do poeta Bruno Tolentino, realizada no Instituto Feminino da Bahia, no dia 28 de julho de 2004 sobre a Invenção da Ideologia. Segue abaixo:

"Um retrato nunca é a realidade. Havia uma tendência à deificação da ilusão. Toda pintura ocidental é ilusão; representa-se uma parte da realidade. A diferença entre a realidade viva e a representação do real é que a representação pode ser representada de novo. O real vivo precisa ser defendido contra toda representação; nada pode substitui-lo; o que é é preferível àquilo que poderia ou deveria ter sido (em nome de "um mundo melhor" matava-se o "mundo pior"). A Era Moderna, especialmente o século XVIII do Iluminismo (que não deixa de ser luz, embora ingênua) é a era da verificação do real. O Iluminismo passa a investigar a natureza do real. A positividade do real é inexorável, a defesa do real deve ser preferida; devemos preferir aquilo que é, que existe, é melhor que a fantasia. As tragédias que aconteceram são fundamentais para sermos aquilo que somos hoje; o mundo como idéia é uma distorção do mundo como fato. Se abrirmos mão disso, caímos no subjetivismo mais profundo. A invenção da ideologia não depende de nós (a invenção da liberdade não depende de nós). A doença do homem é pensar que tem os meios de saber o que é bom. Não posso possuir a sabedoria, posso amá-la. A realidade do século XVIII é procurar saber; é o dever de ser cético. Temos o dever do ceticismo, de verificar aquilo que nos foi dado. A má notícia do Iluminismo é que é que ele traz de volta a perspectiva, e o homem torna-se meramente histórico. Na mistagogia, não há essa espacialização do tempo, e ele pode se tornar a ante-sala da eternidade. Todos temos história, a História não é perfeita. O cortejo da modernidade passa pelo "arco do triunfo" da 1ª máquina de matar: a guilhotina (o século XVIII termina sendo o "século do terror"). É claro que o século XVIII foi a culminância de um processo de desmitificação da realidade; mas aí também se procede a invenção da ideologia (não se precisa tornar tudo cabível num arcabouço teórico).
O pai da Ideologia é Hegel em "A Fenomenologia do Espírito". Na Ideologia, não se tem mais o direito de se ter uma idéia; a Ideologia cria um sistema perfeito. A convenção não faz a coisa. A matemática é uma teoria do universo que compomos. No espírito de sistema, transformamos a representação da realidade na realidade. Na Ideologia, transformamos uma brincadeira em realidade. Com a entrada do espírito de sistema, desaparece o dever de ceticismo (que é a glória do Iluminismo). O auge da percepção do real chegou com Montaigne e Pascal, para ficarmos no óbvio. A coerção que o real traz às nossas idéias mais justas é preferível. É preciso segurar nossa tendência de "curar o real à tapa". Dar lições na realidade é uma das lições mais ridículas que a humanidade já se arrogou. A 1ª coisa que desaparece é o ouvir. A Ideologia é inventada para que a realidade seja melhorada de qualquer maneira. O desafio é suportar a companhia da realidade; o desafio da nossa inteligência é conviver, todos os dias, com o real (isso é o que nos separa do louco). Temos hoje também o complexo de Prometeu (o prometeísmo, que rouba o fogo dos deuses). A realidade não é a soma dos nossos esforços; é isso tudo mais aquilo que nos surpreende. Essa intenção de interferir na realidade para que as coisas progridam nos é pedida por Deus (no Antigo Testamento), mas convém não exagerar- a realidade corrige a si mesma. Parábola sufi: Moisés, Jesus e Maomé escolhem, diante de Deus, três taças. Moisés escolhe o mel, Jesus o vinho e Maomé o leite. Somente o vinho é humano, produzido pelo homem. O leite é aquele que sustenta (Moisés escolheu o mais doce); o Islã provê aquilo que é necessário ao homem, não corre o risco da abstração. Os judeus têm uma capacidade de discutir, de complicar. No cristianismo também existe isso por causa do chamado à perfeição. A capacidade de procurar, questionar-se no cristianismo é inexaurível. "A Sabedoria não é para ser atingida, e sim perseguida. Uma vez atingida a Sabedoria, ela é Loucura."
Nunca temos uma resposta suficiente para os "porquês" e "comos". A grande mudança nos séculos XV/XVI é a introdução da perspectiva (na época da queda de de Constantinopla em 1453).a loucura é trocar o "por que" das coisas pelo "como" delas. Machado e Dostoievski entram nessa lógica.No poema de Machado A Mosca Azul, o fundamental é isso: a troca do "por que" pelo "como". O homem começa a refletir-se na sua própria ilusão. Quando o homem não aceita o mistério diante de si, ele se confunde com sua ilusão; sujeito e objeto tornam-se um só, reina a subjetividade. "A Mosca Azul": este mau poema (forçosamente mau) de Machado é um dos maiores poema da estilística brasileira." Bruno Tolentino

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